Uma das obras de eleição – talvez a Obra – do meu avô ficou imensamente anotada, comentada e povoada de arabescos que sempre foram a sua elegantíssima caligrafia. O livro foi preservado e protegido como obra-prima da memória.
Abri-o ontem. Respeitosamente. Assustadoramente. Reli-o ontem. Tragédia mui sentida e elegante de Dona Inês de Castro A Castro. A aristotélica obra-prima de António Ferreira, com rastos de Séneca e mesmo de Petrarca. Lugar de dolorosos dilemas que acabam por branquear a figura de Inês, mas que magistralmente dão primazia ao dilacerado Afonso IV que finda por desabar à vontade altruísta e nobre dos algozes - porque o bem-comum, Senhor, tem, mais larguezas com que justifica obras duvidosas -, e que mesmo nauseado pelo relativismo ético e pelas falácias dos Conselheiros, vai ser obrigado a arcar com a responsabilidade de um acto que para sempre o marcará como cínico e calculista. A visão cósmica do poder benéfico do Amor, que, no equilíbrio renascentista, se confronta com a visão contrária, a das suas malignidades. A arquitectura fenomenal da tragédia que tem apenas igual na profunda densidade poética da obra. É uma Arte Poética da tragédia. As esbatidas anotações do meu avô aludem - entre tanto a decifrar! -, a Eurípedes, a Ésquilo e ao extraordinário Coro trágico, às Geórgicas de Virgílio, a Camões e a Petrarca, e é percorrendo os labirintos desta densa e poderosa caligrafia que me encontro nula e nua perante o desmedido saber do meu avô e, assustada, tento preludiar o caminho iniciático da Verdade. Entretanto, Já morreu Dona Inês, matou-a o Amor. |