7.7.21

A Gaffe premonitória

 

Henry Beard and illustrated by John E. Barrett.jpg

Há já dois anos bem contados que esta rapariga esperta tem por certo o que escreveu ao agora anunciado presidente da comissão de honra de Susana Garcia, encorpada personalidade candidata à Câmara de Amadora só porque para Amadora bacalhau basta - dir-nos-á Manuel Silvano.  

A Gaffe relaciona esta mimosa e gratificante alusão ao fiel amigo com o passado culinário do colorido apresentador e com a justificação de Rio a este apoio.

É provável que tudo acabe em águas do trocadilho, mas a Gaffe está siderada por reconhecer que nunca esteve tão certa com há dois anos quando rabiscou um amoroso bilhetinho ao Manel Luís que agora se recupera.*

A Gaffe sente-se uma velha sábia e experiente, capaz de ler as cartas e prever futuros, a uns passos curtos da fogueira.

Imagem, cuja semelhança com a realidade é absurda!John E. Barrett


G. Haderer

* Meu queridíssimo Goucha,

Antes de tudo quero desculpar-me por não retirar os óculos escuros enquanto a si me dirijo. Acredite que me sinto mais resguardada, não deixando nunca de perder a oportunidade de exibir o meu lado mais sombrio que contrabalança - sem ofuscar -, a sua esfuziante alegria. Uno este conforto à possibilidade de passar incógnita, irreconhecível, no seu programa matinal.

Escrevo para lhe expor a minha perplexidade, a minha curiosidade e o meu espanto. O menino surpreende. Não me refiro, é evidente, aos seus peculiares outfits, mas às manobras que executa para não se perceber o desespero que parece ter assolado a sua tilintante presença televisiva.

Como é lógico, lembrei-o numa entrevista sóbria que deu, de fato azul escuro, camisa de um alvura imaculada e gravata regimental, a uma senhora que me pareceu transtornada pela escolha – creio que Judite de Sousa. O menino primou pela verborreia e pelo desfilar impecável de todos os lugares-comuns que se possam enojar. Era o sambódromo da banalidade politicamente lavada e interminavelmente limpinha. Confesso que fiquei até ao fim à espera de ver surgir a pomba luminosa que aparentava habitar-lhe o coração. Foi uma desilusão ter vislumbrado apenas uma auréola pindérica colada à sua cabeça com saliva. Não convém, portanto, indicar o politicamente correcto como responsável pelo ruído que amanheceu consigo na TV e que posteriormente atingiu as redes sociais - mais uma vez de pavio curtíssimo.      

Admito que me irritou um bocadinho. Gosto mais do seu registo desafiador, irreverente e ousado e do seu histrionismo capaz de o levar a qualquer lado sem o menor escrúpulo e sem uma pontinha de ética para o apimentar, pese embora cubra estas misérias com um mal engendrado respeito pelo outro, acompanhado sempre por um lamento pio e solidário, uma revolta contra a injustiça e essas coisas todas boas e bonitas que tão bem sabe mimar. Suponho que estas características não lhe são impostas pelo dono de qualquer rubrica. O menino quer, o menino manda. Se o menino bate o pé, o menino tem.  

Repare, meu caro, que o considero um dos mais talentosos entertainers da televisão portuguesa o que é - mesmo que digam que cada estação tem o clima que merece e que cada público tem o que deseja -, façanha digna de registo e acredite que não sou uma velhinha entrevada e enfiada num lar apodrecido à espera de ouvir e ver relatos ilustrados e comentados de assassínios enquanto come a carcaça com manteiga e tenta esgotar a reforma nas chamadas de valor acrescentado que o menino não se cansa de sugerir. Sou uma petiza de boas famílias com um pecúlio razoável e, como tal, não quero deixar de o felicitar pela maravilhosa entrevista que fez a Mário Machado e pela sondagem da sua lavra que questiona se os seus leitores sentem a falta de Salazar - eu sinto. Há uns anos proibiram a colher de pau e o salazar corre perigo de extinção. A cozinha portuguesa fica cada vez mais depauperada. Estou consigo à volta dos tachos. Eu, e a Maria Vieira no facebook.

No entanto, meu caro Goucha, senti que o menino não se informou como deve ser acerca do moçoilo que tinha na frente. Mário Machado não é um rapazinho que fez apenas, há uns tempos, umas declarações polémicas. O menino teve um anjo protector por perto - provavelmente o mesmo que abençoa Teresa Guilherme -, logo ali em cima dos berloques da gravata. Foi um milagre não ter ocorrido um acidente e ter ficado com uma matraca ensanguentada enfiada no seu casamento.

Também não sou -  tal como diz que não é -, apologista do silenciar de vozes que arrastam perigos incontroláveis, eivados de populismo e de outros malefícios - que com certeza reconhece, porque provavelmente sofreu alguns durante a vida. Também não considerei bonito terem retirado o convite a Marine Le Pen para ser oradora naquela festa de finalistas de startups, mas convenhamos, meu caro Goucha, Marine Le Pen, apesar de tudo - e que se saiba -, não roubou, não tentou coagir ninguém, ameaçando gente - nem mesmo uma Procuradora da República! -, não detém armas ilegais, não provocou danos físicos a quem quer que seja, e sobretudo não esteve presa por se ter provado o seu envolvimento num assassinato. É só uma cabra de extrema-direita que pode balir livremente de forma a que se possa facilmente desmontar a bezoa.

Meu caro, não é de bom augúrio tentar lavar à força de lixívia o que deve permanecer porco e visível.

Marine Le Pen e o seu entrevistado - pese embora a afinidade e a proximidade -, são produtos para esgotos um bocadinho diferentes e temos de reconhecer que, nem o menino, nem a pobre Maria, aguentam as descargas de qualquer um destes intestinos sem um esbracejar patético, um nervozinho miúdo e pouquíssimo mais, ou mesmo nada.  

Caríssimo Goucha, retiro os óculos escuros finalmente. Serviram também para evitar o brilho das labaredas da fogueira que, mesmo ao longe, o pode queimar se continua a segurar um fósforo.   

Agora vá, meu caro. Tente controlar as audiências com outros meios, pois que se faz tarde e vai começar o programa gémeo do seu na estação rival.

Beijo.