Depois de ter decidido pagar apenas o que consumia, a Gaffe optou por um tarifário livre, com carregamentos soltos e de valores opcionais, para poder sentir que não estava a ser descaradamente roubada pela Altice, operadora que tinha escolhido por razão nenhuma e porque a enche de tédio ter de ouvir as assistentes da concorrência a impingir-lhe os mesmos serviços pelo mesmo preço, mais cêntimo, menos cêntimo.
Ufana, desandou por ali fora, com a certeza do dever cumprido e
a murmurar o consagrado a
mim ninguém me engana, com um ar de Manuel Alegre na tourada.
Dias depois, recebeu uma mensagem reportando que lhe tinha sido
retirado um euro do saldo, para manutenção
do cartão.
Dias
depois destes, recebe nova mensagem a informar que se tinha eclipsado mais um
euro e mais pico, para manutenção
do cartão.
A
Gaffe ficou pasmada. Não imaginava que um retângulo tão pequenino acumulasse
tanto pó e fosse de tão rápida degradação.
Dias
depois destes dias, foi amavelmente brindada com uma frase lapidar que lhe
comunicava que o cartão ficaria activo até um dia determinado e que, passada a
fatídica data, esta rapariga deixaria de poder efectuar chamadas, mesmo que não
tivesse esgotado o saldo que, descobriu de repente, não era cumulativo. Havia carregamentos a fazer, acudam-lhe os deuses!
Não percebeu o que se passava, mas decidiu deixar que a implacabilidade
do tempo realizasse o dano que a ameaçava.
A
Gaffe ficou com um cartão de telemóvel amputado e a felicidade raiou como
naquelas fotografias lindíssimas que aparecem no facebook a abençoar frases
desgarradas, mas sempre de utilidade extrema.
Segundo informação não fidedigna, o cartão será desactivado
definitivamente ao fim de três meses de inactividade. A Gaffe tem de agendar a
ida ao funeral, que isto de se ser de boas famílias exige sacrifícios.
É curioso verificar, por exemplo, que este procedimento é muito
similar ao aumento das reformas anunciado em forma de slogan. As pobres olham os
foguetes que se lançam e estrelejam e pasmam seduzidas, dispostas a aclamar a
benevolência e o altruísmo de quem olha as folhas de Excel com um desprezo humanista
e se curva perante a miséria alheia, retirando-a do lodo onde a enfiou.
Passados dias - provavelmente o mesmo tempo que leva a chegar a mensagem da
Altice ao telemóvel -, o IRS sorve o saldo para manutenção do cartão.
É também similar ao anunciado para as escolas que subitamente e
ao abrigo do PRR, ficam a saber que o ano lectivo contará com uma sala
absolutamente equipada com o melhor que
há em tecnologia de modo a que os alunos, duas vezes por semana, tragam os seus
computadores portáteis – também eles fornecidos pelo PRR – e tenham aulas - duas
vezes por semana, sublinha-se -, em que a componente digital é avassaladora.
Tão avassaladora que esgota a capacidade dos equipamentos, a capacidade e a velocidade
da ligação e faz com que nos apercebamos da ausência de estruturas, da
inexistente adaptação e renovação do mais básico e da anquilosada, obsoleta e
degradada oferta da esmagadora maioria do parque escolar. Concluímos que a sala
servirá com certeza para se fazer a manutenção
do cartão das empresas que já se prontificaram a apoiar a ideia de ponta tecnológica.
Fica
no ar apenas a vaga ideia da pagela no facebook com conselhos e aforismos
fanados.
É interessante apurar, por exemplo, que a Altice se comporta
como as Câmaras cravadas nas zonas em agonia, destruídas por incêndios, que
distribuíram a grupos de jovens voluntários - que se revezavam mês após mês,
chegados de várias zonas do país às terras assoladas -, carvalhos, pinheiros e
sobreiros, cuja aquisição foi subsidiada, e que não as regavam, que não as
cuidavam, que não as protegiam depois de plantadas, tornando imbecil e patético o
voluntariado que se deparou, mês após mês, com a morte das árvores pequeninas.
Voltavam para recolher outras. A Câmara - logo que recuperada a casa de férias do
amigo - fornecia-as subsidiadas, porque há que fazer a manutenção do cartão.
Fica
novamente no ar apenas a vaga ideia da pagela no facebook com conselhos e
aforismos fanados.
É simpático atestar, por exemplo, que a Altice se comporta como
aqueles que vão provando que o jornalismo desapareceu do quotidiano das gentes.
Restam resíduos avulsos que cospem fast-food servidos em
embalagens de plástico descartável que referem a grande reportagem, ou
a investigação
jornalística, antes de se agarrar o guardanapo que limpa
aberturas de noticiários com telefonemas populistas de presidentes narcísicos,
pois que é necessário fazer a manutenção
do cartão.
Fica
outra vez no ar apenas a vaga ideia da pagela no facebook com conselhos e
aforismos fanados.
É estimulante confirmar, por estes poucos exemplos - e por outros que se calam, pois que iriam deprimir esta chamada -, que o país é
apenas e cada vez mais uma rede de comunicações - privadas ou públicas - com
uma razoável equipa de marketing e
que no fundo tudo se resume à manutenção
do cartão e a uma pagela no facebook com conselhos e aforismos
fanados.
Por isso a Gaffe decidiu - enquanto pode -, mal receba uma chamada de uma operadora que lhe quer anunciar a Boa-Nova, sussurrar num tom arrastado e rouco, mafioso, mesmo antes de ouvir o que quer que seja:
- Já está. Manutenção feita… Mas há sangue por todo o lado.