2.9.21

A Gaffe lambuzada

Anjo soprando uma trombeta - Edgar Degas

São rocambolescas as figuras que se escrevem quando escorregamos pelas mais lúgubres cloacas do que somos.

Li com a feliz leveza da indiferença de quem não adjudica importância aos correres das penas e da pena de quem se vai tentando erguer como arauto de causas nobres e que escolhe como bandeira e prova desse impulso a gloriosa defesa dos direitos das mulheres - escorraçando, banindo, esconjurando e aniquilando tudo o que deles se afasta –, uma ínvia e sinistra insinuação que transforma o clássico ela sabia para onde ia num mimoso chupa-chupa.


Sugere a mulher - a de peito aberto pela coragem feminista, rasgado pela intenção de luta, quando o macho faz soar as cornetas do apocalipse do todo feminino -, que a lambidela feminina num gelado tem subentendidos eróticos que revelam intenções mais ou menos obscuras e uma clara vontade de quem lambe o sorvete de acicatar a libido do transeunte - e em última instância, em ser violada, conjectura-se.

Digamos que é o tradicional ela pôs-se a jeito numa versão da Olá.

Estendendo este buraco à criançada, é insinuado em simultâneo que a lambidela infantil no sorvete merecido deve ser resguardada de olhares alheios e nomeadamente do potencial pedófilo que de repente se vê confrontado com o inevitável, estimulado por esta propositada e perigosa provocação.

Nestas tenebrosas insinuações adivinha-se, curiosamente, a desesperada míngua a de sexo oral ligada à desertificação contínua e inexorável de uma sexualidade missionária, ou no mínimo conventual - com clausura e voto de pobreza.

O estreitamento quase patológico revelado por estas visões condenatórias de sorvetes transformados em pénis que mulheres e crianças acariciam publicamente com a língua, pode não distar muito das raízes menos visíveis dos conceitos fundamentalistas que atribuem à mulher a condição de bicho pagão, inútil serpente e provocação do Mal, susceptível de conspurcar o chão que o homem conquistou, que vão sendo glorificados sobretudo no Oriente Médio, mas que alastram em metamorfoses e subtis variantes impensáveis, demasiadas vezes inesperadas e cobertas por alegada civilidade.

A defesa dos Direitos das mulheres tem a obrigação de ter em conta estes minúsculos, mas quotidianos, boicotes que passam despercebidos por se identificarem com a inocência do resguardo púdico, da salvaguarda da intimidade e de determinado conceito de boa educação que muitas vezes se confunde e se identifica com repressão.

Em resumo, a defesa dos Direitos das mulheres não pode ignorar a sabedoria japonesa que ensina que se não recolhermos o lixo que temos à nossa porta, jamais as ruas ficarão limpas.