21.11.21

A Gaffe e o Ken


A Gaffe não simpatiza com os metrossexuais.

Não é de todo agradável perceber que o rapaz que lhe prometeu no dia anterior viagens alucinantes pelo universo da masculinidade mais renhida e empedernida, lhe surge na manhã seguinte usando os cremes que lhe surripiou, escancarando as portas do armário onde se escondiam da demanda sorrateira do patife.

Uma rapariga fica sempre amorosa enfiada numa banheira de espuma, el cuerpo caliente, um dolce farniente sem culpa nenhum, com duas rodelas de pepino cravadas nas olheiras e a cobri-lhe a face uma pasta esverdeada que a torna, ainda que temporariamente, o Fantasma da Ópera.
Ao som de Vivaldi, a Primavera dos unguentos, das pastas, dos óleos, dos cremes, das essências, das loções, dos hidratantes, dos esfoliantes, dos depiladores, dos amaciadores, dos condicionadores, dos rejuvenescedores e de todas as outras dores que nos arrancam o tempo a pinças e tiras de cera quente, é sagrada.

Jamais abdicaremos do nosso estético intervalo masoquista. Não é contudo muito agradável apanhar logo pela manhã desprevenida - em que é suposto o pequeno-almoço ser servido na cama por um matulão com a barba por fazer, de calças de pijama e tronco nu, que não se esqueceu de lavar os dentes antes de acordarmos e depararmos com esta cerimónia com um travo cliché - o susto tenebroso de termos ao lado a rígida, hirta, tesa, petrificada e esquálida face de um homem que se lembrou de estucar a cara com os cremes que usamos no aconchego da nossa mais esconsa intimidade e de vazar os olhos com as rodelas de algodão embebidas em essências que prometem a aniquilação de todas as rugazinhas que trazem pés.

Não é nada encantador, sobretudo se pensarmos que, de acordo com a Lei das compensações, se rígida está a cara do rapaz, solidificados os cremes hidratantes, é limpo que outras miudezas ficam frouxas.
Depois, é um desalento insípido uma rapariga ir de encontro aos peitorais de um rapagão sem que o embate seja amortecido por uma discreta e subtil almofada de pêlo ou pensar, no abrigo de um sono adivinhado, que as pernas masculinas onde se enrosca estão melhor depiladas do que as dela.
A destruição do delicioso atrito causado pelos pêlos masculinos no veludo da nossa pele macia e depilada deveria ser excomungada ou exorcizada pelo Papa, repudiada pelo Dalai Lama e condenada publicamente pela Isilda Pegado - e a barba crescida não conta como atenuante.
A Gaffe lamenta a ensandecida fúria, a cruzada destruidora, a guerra aberta travada nos campos de batalha de azulejo e mármore - de Carrara ou daqui perto - dos WC das suites masculinas, contra toda a pilosidade que subsiste. Perdoa aos pecadores o desertificar, o desbravar, o arrotear, o desmoitar, das costas - não vá pensar-se que gosta de peluches, - mas não absolve os homens que a fazem pensar que acordou com o Ken XL enfiado na cama.