Levou três anos a ser recuperado.
A minha avó, com luvas brancas de feltro, retira dos
invólucros as pequenas figuras. Escolheu o móvel japonês lacado com
incrustações de madre-pérola, para pousar as relíquias.
Despojou-o. A superfície negra, lustrosa, polida, acolhe as
texturas resgatadas das imagens.
Quase três séculos depois, as três figuras abrem-se no
esplendor do início.
- Queres ajuda, avó? – Tenho tanto medo de tocar
no tempo!
- Quero que retires da caixa mais pequena os querubins.
Os querubins adormecidos. De asas fechadas a ouro
folheadas. Um e outro. Medo a medo. Nas minhas mãos o tempo adormentado,
entregue devagar a outro tempo.
Inamovível, intocável, imperecível
a Senhora inclina o rosto de marfim para a criança que sustém ao
colo. Senhora de marfim e talha de ouro. Senhora de José, ao lado, no lado
que os protege.
Eu fico muda.
- Pousa-os, minha querida. Pousa os teus anjos aos pés
de quem quiseres.
 
Aos teus pés, avô.
O dormir do Tempo e o dormir da Morte aos pés do meu avô fecharam asas.
A Gaffe e o dress code
A camisola de malha grossa de Natal do meu avô era vermelha
com uma barra larga branca no peito por onde saltitavam renas cor de camurça de
guizos minúsculos ao pescoço, bonecos de neve com sorrisos de lã perto de
dezenas de árvores de Natal repletas de pequenos pompons coloridos e de
estrelas verdes que emolduravam o friso. Tinha flocos de neve espalhados por
todo o lado.
O meu avô usou-a durante décadas na véspera e no dia de
Natal, perante a discreta reprovação da minha avó negada pelo olhar e sorriso
doce com que o brindava mal o sentia distraído.
A camisola era inevitável como o presépio, como as velas, as
coroas de azevinho ou o pinheiro que coroávamos sempre à meia-noite.
A camisola do meu avô fez parte do Natal da minha família
durante toda a minha vida. Era tão inevitável como um cântico ou como os laços
nos presentes. Era tão esperada como a visita do Pai Natal ou como o fogo na
lareira ou como aquela noite sempre gelada no Douro ou como a imensurável
felicidade do desembrulhar dos presentes.
Sentado à cabeceira da mesa natalícia o me avô tornava-se o
maestro do Natal e nada, absolutamente nada, me oferecia tanta segurança, tanta
certeza, tanta amenidade e bonomia, tanta felicidade e paz do que ver as renas
a engordarem à medida que os Natais passavam.
Este Natal o meu avô não vai poder usar a sua camisola.
Sou a neta mais nova.
Neste Natal o meu mais querido presente, chegado nas mãos da
minha avó, vai ser a velha camisola vermelha de lã grossa com uma barra branca
e enfeitada.
Neste Natal vou usar a camisola do meu avô e todos os meus natais futuros terão a velha camisola a orquestrar a ceia. Serei a maestrina da
saudade.
Queria tanto que neste Natal, por todas as avenidas deste
mundo, passassem cachecóis de malha grossa, vermelhos com cristais de gelo,
camisolas e gorros com pompons e estrelas e flocos espalhados, luvas vermelhas
com pelinho branco, casacos com renas estampadas e árvores de Natal em todas as
bainhas e brilhos verdes de azevinho entretecidos nos fios e nos laços que
prendem os cabelos!
Nenhuma guerra teria continuidade, nenhuma batalha se
iniciaria, nenhuma questiúncula poderia resistir se as ruas se enchessem de
camisolas de Natal como a do meu avô.