6.12.21

A Gaffe sucateira


Já não me lembro quem disse que a evolução de um país se mede pelo modo como esse país trata das suas crianças e dos seus velhos, mas sei que tinha um sábio professor que afirmava que havia um método bem mais simples de diagnosticar tal estado evolutivo: olhar para os dentes dos seus habitantes. 


É difícil imaginar o choque que é assistir ao retrocesso do meu país. O estado lamentável em que se encontra a população que vai a pouco e pouco regredindo. Num curtíssimo espaço de tempo o povo que conheço empobreceu de forma assombrosa e essa pobreza gerou uma espécie de violência que vai surgindo nas mais pequenas coisas.

 

Apanhei há uns tempos dois miúdos que tinham apanhado dois bichos minúsculos - penso que dois ratitos, mas nem sequer quis verificar - e enquanto um os segurava, o outro esmagava-lhes a cabeça com uma pedra. Riam-se muito. Apeteceu-me desfazê-los à estalada. Conheci uma velha senhora que guardava o pão na gaveta da mesa-de-cabeceira durante uma semana. Não o deitava fora porque tinha medo de não ter dinheiro para comprar mais. Não o comia, porque tinha medo de quando tivesse fome não ter nada para morder. Soube de outra que sofreu danos relativamente graves no estômago porque partia as ampolas que lhe tinham sido prescritas e deixava os pedacinhos de vidro no copo. Há ainda um homem que espancou o filho de cinco anos. No dia seguinte a professora quis transportá-lo ao hospital, mas parece que é proibido. Teve de chamar uma ambulância. Não foi acompanhado por ninguém. A criança tinha duas costelas partidas e hematomas por todo o lado. Foi batido porque não conseguiu ler a palavra bonito - já conseguia ler palavras que começam por a. Ficou internado por ordem do tribunal, mas o pai tem direito a visitar a vítima que chora compulsivamente quando o vê porque tem saudades. Soube que há um edifício ainda em construção, mas embargado por falta de licenciamento, onde duas adolescentes se prostituem a troco de pechisbeques. Uma delas é portadora de trissomia 21. 


Soube de tanta miséria, tanta e de tal forma em expansão, que desato a chorar se continuo a escrever mais e já nem sei se por raiva ou se por esse tão falado lamento português. 


O meu país tem os dentes podres.