6.12.21

A Gaffe passada

06/12/2015


Chegaram ontem protegidas por películas translúcidas e separadas por almofadas de espuma.

São fotografias velhíssimas que mandei restaurar e copiar. Ao lado tenho o CD onde permanecerão por mais algumas décadas.

Encontrei-as carcomidas. Expulsas dos livros de ouro das memórias mais acarinhadas por razões que desconheço.

Numa delas, a minha trisavó, ao colo do pai, é uma criança que casará adolescente e que será mãe de mulheres, prolongando o matriarcado que ali se adivinha.

É fácil ainda identificar cada elemento do grupo. A s suas posições na hierarquia, o grau do seu poder, o parentesco, o espaço que ocupam na arquitectura da família. Percebem-se os elos afectivos distintos que unem esta gente longínqua. As interacções são reveladas por braços que protegem, por inclinações da cabeça ou por colos que se dão numa indiferença masculina.

O desamor também.

Ainda hoje é fascinante o modo como reagem e interagem os descendentes deste clã quando se agrupam.

Existe uma cidadela onde se fortificam aqueles que já nasceram dentro. Os elementos anexos, aqueles que chegam, provenientes de ligações, uniões ou acordos, são tidos e vistos como inevitáveis apêndices. Os homens e as mulheres, sobretudo eles, devem passar por longos períodos probatórios até adquirirem estatuto que lhes permita opinar, ser ouvidos e tidos como elementos de pleno direito e sobretudo penetrar nas defesas fechadas das matriarcas. Entretanto, é necessário que se reproduzam para que se espalhe a sombra deste voo.

É tão fácil reconhecer os mais frágeis! Os que chegam embaraçados e constrangidos, ao covil atento daquelas que dominam.

Dos mais frágeis, o meu mais amado, a minha saudade, a minha dor mais funda, tinha olhos que lembravam terra arrancada ao mar e a fragilidade insuspeita da tulipa. Tinha as mãos longas de peregrinação e a corrente de um relógio eterno que enrolava nos dedos. Tinha a benevolente paciência dos ouvintes ternos e a doçura das palavras certas ditas baixinho para não doer. Tinha cabelos de seda penteada. Usava camisolas de gola alta que o alongavam e o transformavam em cisne ou em espiga de trigo. Tinha a voz dos meigos, aquela voz que é bom ouvir quando troveja e um sorriso de lua a crescer numa noite de Verão.

Penteava-me o cabelo com os dedos e murmurava a ladainha docemente e depois de me beijar, arranjar as almofadas, saía a sorrir fechando as asas.

Anjo da Guarda 
De olhos cinzentos 
Protege minh’alma 
Da fúria dos ventos 

 

Anjo da Guarda 
Doce companhia 
Não deixes morrer 
A luz do meu dia 

Num alto rochedo 
Pousa a minha mágoa 
E faz com que o medo 
Se transforme em água

 

E quando eu partir 
Ó doce bonina 
Dá-me as tuas asas 
Qu’eu sou pequenina 

(Oração francesa do século XIX na tradução livre do meu avô)

A Gaffe da trisavó

06/12/2018

A situação não é a mais favorável - como se habitar fosse conjuntura -, cravada num recanto da casa que ninguém pisa, voltada para um jardim que ninguém quer e que se vai matando em castanhos queimados de folhas inúteis. Duas árvores por servilizar arranham os vidros com os pregos dos troncos retorcidos e existe - já ninguém sabe onde - a imagem de pedra de um fauno que por trepadeiro pudor foi resguardado com mantos de silvas.

As portas nunca se fecharam, porque ninguém as quis abertas. Permaneceram todo o tempo numa espécie de limbo, por onde rastejava a pouca luz que emagrecia nas janelas entreabertas.

É uma sala feia que, embora espaçosa, parece mirrada pela quantidade de acicates, manigâncias e minúcias que retém e que nos confundem.    

 Era a sala da minha trisavó.

Existe numa das paredes, condenado, um retrato de meio corpo da senhora, da autoria de um pintor menor, francês, sem história de arte, de provável metro e meio - o quadro, que do pintor não resta medição. O tempo fez estalar na tela arredondadas e distorcidas células, unindo-as num tecido invasor de um exército maldoso de linhas estrategas.

A retratada usa um vestido de saia de seda pesada escura esverdeada, corpo de mangas estreitas, com punhos de renda bege que lhe tocam as falanges e gola subida no mesmo entretecido. Uma mantilha azul enegrecido, bordada em tons de cobre, espalha-se no regaço. É uma mulher de cerca de trinta anos, de rosto redondo, olhos cinzentos, plácidos, amortecidos pela inabilidade do artista e cabeleira ruiva, densa, presa por adereços, ganchos e travessas que lhe escravizam os caracóis. Dizem que sou assustadoramente parecida com ela e talvez por isso a mantenham prisioneira na sala que ninguém quer ver ou habitar. Não consigo julgar.

Fomos eu e o meu Amigo, invadir - porque o meu gigante descobriu que a pequena biblioteca da sala se mantinha inviolada desde o desaparecimento da dona - a sonolência do espaço eivado de detalhes femininos, que sobrevoam a escolha dos móveis, pequenos, trabalhados, minuciosos, pormenorizados, quase rocambolescos, até ao poiso nos ramos de desbotadas flores que murcham nos padrões das almofadas e estofos de cadeiras.

A senhora olhou-nos e voltei a pasmar perante a clareza com que me atrevo a parecer-me com ela. Se o pobre e esquecido pintor me tivesse como modelo, no presente, ganharia alguns cobres livres de canseira, pois que podia exibir o retrato antigo, clamando ser o meu.  

Estupefacto, o meu bom Amigo petrifica.

- És tu. Até as mãos são as tuas!  

A mão esquerda maculada pelos dedos da raiz do envelhecer da tela toca o colo espartilhado e aflora o colar de pérolas que pertence à minha irmã, agora. A direita, pousado no regaço, segura um livro pequeno de capa de couro. A página está marcada por um dedo anelado e por, ao mesmo tempo, um marcador em ouro, punhal pequeno e fino que serviria para rasgar as folhas ainda unidas. Uma dobra da seda do vestido esconde parte do título do que lia. Livro de Horas, uma hagiografia, um romance permitido às senhoras mais letradas?

Mais do que esperado, foi o livro pintado o foco de toda a atenção do meu Gigante. Que livro seria? O que lia aquela mulher? Que obra escolheu para ser incluída no retrato? Foi escolha aleatória, ou teve propósito?

A lombada do livro estava escondida por uma onda de seda do vestido e a tela tinha estalado no lugar que provavelmente nos indicaria a pista mais certa, mas se o realismo do retrato tivesse sido completo, como assim se fez com o cenário que identifica a sala, a exígua biblioteca privada da senhora guardaria ainda a obra retratada.

O móvel vidrado contém um número de obras limitado, mas muito heterogéneo. Os livros foram claramente eleitos usando-se o critério traçado pelo coração.   

Os sonetos de Petrarca, os de Camões. Os de Shakespeare. Os sermões do Padre António Vieira. A Odisseia. Ovídio. Virgílio. Madame de Staël. Molière, Racine e Diderot ao lado de vários romances franceses sem qualquer valor e pouco mais, que ler era para homens.

A obra retratada estava ali. Minúscula e sufocada entre Encyclopédie de d’Alembert e Voltaire, Rousseau, e Montesquieu que deitados se sobrepunham.

O punhal, apenas de lata, sinaliza ainda a página que marcava no quadro.  

Eis a escolha da minha trisavó, com a lombada voltada para a madeira.

Durante todo o fim-de-semana procuramos a chave que abre a pequena biblioteca.

Encontramo-la ontem, já noite cerrada, numa das gavetas da secretária da biblioteca do meu avô, presa a uma etiqueta em papel amarelecido onde está escrito, em letra velha e gasta, apenas um nome: Claire.

Hoje, vamos abrir o que foi escurecido.