21.1.22

A Gaffe num conselho da avó

Remy Cogghe

Não me penso capaz de análises políticas susceptíveis de se escapulirem por estas pobres e cansadas Avenidas. Não sou proficiente, ou resiliente, como agora se diz.

É-me indiferente saber se foi o esfumar de determinado partido - que gotejando névoas mais suspeitas, promveu a visibilidade e a liquidificação de uma extrema-direita, populista e grandiloquente, patrioqueira e balofa, oportunista e alegadamente unipessoal, xenófoba, homofóbica, racista, misógina, onde também podem agora chapinhar ufanos os que não dizem, mas pensam -, o impulsionador, o obreiro, o que elegeu como parceiras, como idênticas às suas, propostas como, entre outras, as de eliminar o Ministério da Educação, castrar quimicamente agressores sexuais, defender a pena de morte ou a de prisão perpétua, ou proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, interditando-lhes a possibilidade de adoptar.

Reconheço apenas que a Democracia portuguesa durante quarenta e muitíssimos anos recusou admitir que nela eclodisse o ovo da serpente - embora chocado por um Coelho - e que a festa da Páscoa nunca tivesse a antecedê-la uma Quaresma de ofídios.

Provavelmente a Europa - e os outros mundos liderados por escroques -, entrou numa espécie de pós-democracia e eu, provinciana, não o percebi, nem a consigo enunciar.

Dizem os entendidos que não pode deixar de ser saudável a chegada dos populistas de extrema-direita à ribalta política, ao palco dos parlamentos. Ali podem ser desmascarados, trucidados com argumentos eivados de liberdade e de razão, desmascarados, revelada e denunciada a sua vacuidade e anulado o perigo que inevitavelmente encarnam, gota de ácido a alastrar e a corroer as fibras do tecido a que os Velhos chamaram Liberdade.

Seria certo.

O errado é que nas areias dos discursos dos que se dizem e querem heróis e paladinos das alvoradas e dos dias que os poetas esperaram, há palavras empapadas, curvilíneas serpentinas, circos, malabaristas, contorcionistas, confusões de lantejoulas, nadas movediços e avalanches de ocas frases feitas em que o tempo se esgota de modo aflitivo e irado, porque os outros palram demasiado impedindo que se exibam outras oratórias igualmente vácuas.

Os eleitos a temer podem agora ter palanque, mas será que as nossas democracias estão preparadas para os ouvir?

É neste tempo acelerado pelas elocuções ensopadas pelos egos, no tempo sem tempos ou compassos, num tempo de espera que tem sido asfixiado ou atropelado sucessivamente, que urge perceber que somos obrigados a uma escolha rigorosíssima da palavra, a uma selecção implacável da frase, a uma precisão inusual do discurso,  a uma cirúrgica forma de comunicar o que se defende.
Já não se ouve com clareza ninguém há muito tempo e é dever nosso esperarmos que a ideia surja inevitavelmente concisa, paradoxalmente clara, sem os adornos cintilantes do costume, de forma a termos tempo e sobretudo a termos o tempo de pensar e, talvez por ironia, tenhamos desta forma tempo para esvaecer os que de tão fluentes arremessam, com a urgência de quem quer calar o outro, todas as palavras atoladas.

Saberemos então - e também - que seguimos nesse tempo de pensar o conselho velhíssimo da minha avó:

Desconfia sempre de um orador que traz a fúria escrita num papel.