A manhã entra pelos interstícios das árvores e das pedras.
Madruga a neblina.
Era usual, de braço dado, caminhar com a minha avó pelos trilhos das camélias e dos bichos. Íamos postas em sossego. Às vezes, anotávamos as banalidades da terra. Uma flor que entretanto abrira, um pássaro que rasava a água, ou a gota de orvalho que gelava no cálice das mãos de uma estátua de pedra. Nada havia de transcendente nestes caminhares. Eramos terrenas e vulgares e era Inverno. Bastava.
Hoje caminhei com a minha mãe pelo trilho das camélias e dos bichos.
Há uma quase religiosidade na brandura com que a o braço me é dado, um milagre que filtra a decomposição do mundo, que revela apenas a luminosidade da floração do espaço, na forma tranquila, pacífica, provavelmente submissa, com que a minha mãe se move e me acompanha.
É nesta bonomia etérea que se revela a negação do poder. A minha mãe nunca possuiu a capacidade de subjugar, de exigir, de manipular ou de se edificar como matriarca. Nunca foi mais do que a senhora de um silêncio longo e apaziguador, nunca ambicionou ser mais do que a pausa no respirar de um texto e nesse cumprir de desiderato tornou-se a mais doce das criaturas que esvoaçam.
A imagem que retenho é a deste caminhar.
Um casaco de malha grossa, largo, de jacquard - cristais de neve beges e castanhos, sobrepostos, que a agasalham num cruzar deformador -, as calças cigarrete, os sapatos rasos, picotados, masculinos, de cordões, a camisola de gola alta – turtleneck, insiste -, o colar e o lenço de seda de cor queimada num nó desengonçado, alisam o conforto que reavemos depois das trovoadas.
Vou pelos interstícios das árvores e das pedras, como outrora de braço dado à minha avó. A mesma onda no cabelo, os mesmos brincos de pérolas, o mesmo olhar o voo dos pássaros a rasar a palma das estátuas.
Terrena e vulgar, então percebo que nunca caminhei tão perto da mais rara das origens do silêncio. O amor pelas coisas mais pequenas.