28.4.22

A Gaffe anelar


Acredito que os usos e costumes ancestrais, os rituais sem memória dos começos, os cultos, as tradições, os ritos e as cerimónias, quando circunscritas a um grupo específico colocado no interior de um outro de largo espectro e de vasta abrangência, fornecem, ao grupo minoritário, uma coesão inusual, solidificam a sensação de pertença, colmatam ou atenuam de modo que me transcende a ausência de um dos seus membros, fomentam a solidariedade entre pares, atenuam a sensação de desenraizamento que assola os mais isolados e criam identificações essenciais ao crescimento de cada um dos indivíduos.

Por acreditar piamente nestes seus factores preventivos, curativos e catárticos, cumpro sem qualquer indecisão, todos os rituais, todos os ritos e cerimónias, obedeço a todos os usos e a todos os costumes que se foram solidificando através do tempo e que a mim chegam inalterados e sei, num saber sem experiência feito, que o equilíbrio do universo - do meu universo -, deles depende.

Esta minha gente tem no acervo da memória gestos antigos que traduzem de forma ritualizada - muitas vezes sacralizada e tantas vezes demasiado orgulhosa - a importância vital de pertença e a noção de raiz, essencial quer à construção do presente, quer à do futuro. Por norma, esta memória é encarnada num objecto, ou num conjunto de procedimentos, atitudes, comportamentos ou inevitabilidades - porventura anacrónicos - construídos pelo tempo da ilógica, que se vão repetindo depois de aprendidos de modo inconsciente, ou por imitação.

No conjunto dos objectos cujo capital simbólico é incomensurável, existe um anel.

Um grosso, pesado e grande aro de ouro limpo, boleado como uma aliança sem a ser, porque adelgaça e estreita no correr da curvatura para que não seja perdida a ergonomia.

Não é, de modo algum, um símbolo de poder, embora seja doado a quem o tem por direito. É a união de várias uniões.
Pertence naturalmente à matriarca que o usa ao lado da aliança matrimonial.

Usa-o até à morte.

Findo o seu tempo, o anel e a aliança onde está gravado o nome do consorte, são retirados e entregues a um velho ourives de Gondomar - ou ao filho, ao neto, ao bisneto, ou ao neto do bisneto, escolhido pela inabalável fidelidade à honra, prestigio e lisura que impedem a fácil vigarice, serpente e maçã neste caso -, que os fundem numa perplexidade sempre renovada, para produzir no mesmo molde uma peça em tudo igual à destruída, mas que tem dentro agora a aliança com um nome masculino no interior. O anel não atinge dimensões incomportáveis, porque é dele retirada a mesma proporção de ouro que lhe foi acrescentada, produzindo-se com ela uma gota de um colar.
Este proceder honra os homens que pertenceram à história da minha família, torna inolvidáveis as uniões havidas e representa, não o poder absoluto da matriarca, mas de certa forma as emoções contidas no passado, o amor que trespassou uma família inteira e o seu capital simbólico é desmesurado.

Pertencia, como não podia deixar de ser, à minha irmã.

Ofereceu-mo no dia do meu aniversário com uma dedicatória manuscrita à pressa:

Porque tu és a guardiã das emoções.

No meu anelar direito trago agora o peso de vários corações.