No Douro há esta casa oculta que permite a luz, que deixa que os clarões do sol invadam o sossego e que consente a enganosa sensação de ser habitada pela claridade mais límpida, pela imaculada cor do sol que se mistura nela.
No Douro, esta casa medonha enclausurou a melancolia dos distúrbios do sol no chão e nas paredes e as infantilidades luminosas que trepam os degraus e se dependuram nos umbrais das portas e janelas.
A casa trespassada pela luz, como se a luz não fosse mais do que um punhal.
Gosto da luz desta casa encoberta que me redime e deixa extenuada, porque se derrama e propaga como nenhuma outra claridade o faz dentro de nós que a autorizamos a entrar, porque me lava e limpa e me deixa dentro dissipada, por ser a única, a última, que dentro das paredes da clausura me permite, dentro da cegueira, olhar e ver a escuridão passada.
Contaram-me depois de tantos anos:
Abril de 1975
Abres-me a porta agora?
A Gaffe de Abril
25/04/2017
Às vezes, de tão cegos com o pó que se levanta pelo caminho,
ficamos presos ao lugar de onde pensamos ter saído há muito tempo.
A manhã gelada.
Há uma névoa escura a subir escadas que
vai toldar a luz que mal nasceu.
Ouvem-se os ruídos comuns a todas as partidas.
Perfilam-se os homens e as mulheres ao fundo da alameda onde
curvamos encaminhando o carro para a saída que nunca ninguém viu até agora como
um portal de adeus.
O carro já na curva está parado. Os homens cegam as mãos. As
mulheres de mãos em cruz sobre os regaços. Abraço os velhos e chama-os pelos
nomes. Domingos. Àlvaro. José. António. Joaquim. Como se os
abraços fossem baptizados.
Outros. Mais quatro ou cinco que me dói ouvir.
É a última da fila.
- A menina volta?
Eu parada, de olhos líquidos. Um vento frio deu-me lágrimas.
Ela insiste:
- A menina volta?
Tiro-lhe as mãos dos bolsos do avental, inclino-me e beija
uma. E depois outra. Eu sei que não e digo :
- A tua menina nunca sai daqui.
E ao entrar no carro olho-a e repito o que talvez só eu
agora entenda e mais ninguém:
- Há um adeus, minha querida, que faz da nudez da alma uma
caverna. Outro há que dela faz um céu aberto, mas é o nosso último adeus o que
tem o rosto da inocência. É o único que não se dissipa no escuro.
A
Gaffe em Abril
Desconfia sempre de um orador que traz a
fúria escrita num papel.
Avô
Rafael Ochoa |
São do povo, as flores. Um chão que não tenho aqui, mas que existe nas mãos de vidro fosco que pousou na macia madeira antiga do meu quarto.
O dia rola inútil próximo da luz que entra pela janela e a
mansa inocência das hastes do florido oscila subtilmente.
Tudo é simples:
O dia vai passar sem o peso de um longínquo Abril sobre os seus ombros.
A Gaffe num slogan
25/04/2018
Não falo no Yes, we can, tornado pela desilusão em Yes! weekend! ou pela necessidade de afirmação e resistência, no Yes, we camp, ou ainda pelo ameaçador America First.
Falo, por exemplo, daqueles que funcionaram quase como previsão sinistra do que, não sei se apenas metaforicamente, veio a acontecer, como o on mangera les riches, ouvido durante Maio de 1789 e Novembro de 1799, em Paris.
Refiro-me aos mais poéticos, inscritos nas ruas de Maio de 68, como o ouvido e inscrito nos muros parisienses je suis comme un oiseau mort quand toi tu dors, que apelava de forma belíssima à consciencialização política dos estudantes que hesitavam.
Nunca gostei de ouvir slogans que não fossem
susceptíveis de se transformar em lança espetada num determinado tempo ou acção
específica, resumindo e revelando um sentir determinado.
Por isso me apaixonei pelo que li, inscrito num cartaz que
vi passar nas mãos de um velho, na brevíssima e contida reportagem sobre
a desilusão portuguesa que cavalga ainda, mintam o que quiserem.
DE CRAVOS A ESCRAVOS