25.4.22

A Gaffe em Abril

René Magritte
A casa encoberta enche-se de navalhas de luz por esta altura.
Lanhos luminosos que se estilhaçam nos ladrilhos, que surpreendem as esquinas dos móveis e se estiram devagar prolongando o brilho dos tampos das mesas e dos corrimãos.
No Douro há esta casa oculta que permite a luz, que deixa que os clarões do sol invadam o sossego e que consente a enganosa sensação de ser habitada pela claridade mais límpida, pela imaculada cor do sol que se mistura nela.
No Douro, esta casa medonha enclausurou a melancolia dos distúrbios do sol no chão e nas paredes e as infantilidades luminosas que trepam os degraus e se dependuram nos umbrais das portas e janelas.
A casa trespassada pela luz, como se a luz não fosse mais do que um punhal.
Gosto da luz desta casa encoberta que me redime e deixa extenuada, porque se derrama e propaga como nenhuma outra claridade o faz dentro de nós que a autorizamos a entrar, porque me lava e limpa e me deixa dentro dissipada, por ser a única, a última, que dentro das paredes da clausura me permite, dentro da cegueira, olhar e ver a escuridão passada.


A Gaffe num instante
Laura Makabresku

Contaram-me  depois de tantos anos:

 Abril de 1975

A empregada veio de mansinho para provocar menos estragos no tempo de descanso da minha avó. Entrou, almofadada, embrulhando as mãos no avental florido.
A minha avó olhou-a e levantou-se.
Agarrou-lhe a blusa e afastou-a. Murmuraram na sombra, junto da janela, escondidas por portadas de madeira. As duas cinzentas. As duas vibrantes. Subitamente em redor delas o estremecer do ar, a subtil presença do alerta, o espasmo das presas que detectam o odor do predador de focinho a vibrar.
A rapariga desatou a chorar. De mãos erguidas, como um lenço sujo. A minha avó prendeu-lhe os braços, sacudiu-a e deu-lhe as ordens secas, pesadas como chumbo ou perfumes tombados da janela. A ameaça erguia-se. Escorria pelo soalho a pressa suada da partida. Por isso havia a urgência. Por isso seguravam nas adolescentes. Encaixavam-nas no fundo do carro.

A minha avó fechava as mãos da mulher mais velha sobre as chaves, no meio do barulho de malas atiradas.
Depois as portas e as janelas encerradas. O carro a trabalhar. A minha avó a descer o vidro e a assinar as ordens derradeiras.

Ninguém entra. Que tudo se mantenha como está. Defende-me esta casa com a vida. Lembra-te sempre do que é bem mais forte do que qualquer tiro: a menina volta. Se não for esta, será a depois desta. Custe o que custar, uma menina volta.

Abril 2016

Abres-me a porta agora?


A Gaffe de Abril

25/04/2017 

Às vezes, de tão cegos com o pó que se levanta pelo caminho, ficamos presos ao lugar de onde pensamos ter saído há muito tempo.

 

A manhã gelada.

Há uma névoa escura a subir escadas que vai toldar a luz que mal nasceu.

Ouvem-se os ruídos comuns a todas as partidas.

Que tudo está em ordem, que não se fecharam as janelas de cima; que não se esqueçam do guardar os livros que foram preteridos aquando da remessa dos objectos; que os quartos maiores devem ser todos os dias bem arejados; que os jardins ninguém lhes toque que cuidará deles o João; que lhe obedeçam; que aos relógios é sempre de dar corda.
Os carros já chegaram. A minha irmã levará os pais e eu terei o meu irmão só para mim.

Procuram apressar o meu lentíssimo adeus que repisa o olhar por todo o canto.
- Tens frio? - digo que sim e subo para trazer o xaile antigo e regravar memória.

Perfilam-se os homens e as mulheres ao fundo da alameda onde curvamos encaminhando o carro para a saída que nunca ninguém viu até agora como um portal de adeus.

O carro já na curva está parado. Os homens cegam as mãos. As mulheres de mãos em cruz sobre os regaços. Abraço os velhos e chama-os pelos nomes. Domingos. Àlvaro. José. António. Joaquim. Como se os abraços fossem baptizados.

Outros. Mais quatro ou cinco que me dói ouvir.

As mulheres são poucas que elas choramingam e neste adeus não há lugar para o choro.
Por entre as saias e lenços sobre os ombros, a minha velha, velha, velha amiga, a que ficou para mim, sempre à minha espera, espera de mãos guardadas nas grutas do avental. Tem pedras na garganta.

É a última da fila.

- A menina volta?

Eu parada, de olhos líquidos. Um vento frio deu-me lágrimas.

Ela insiste:

- A menina volta?

Tiro-lhe as mãos dos bolsos do avental, inclino-me e beija uma. E depois outra. Eu sei que não e digo :

-  A tua menina nunca sai daqui.

E ao entrar no carro olho-a e repito o que talvez só eu agora entenda e mais ninguém:

- Há um adeus, minha querida, que faz da nudez da alma uma caverna. Outro há que dela faz um céu aberto, mas é o nosso último adeus o que tem o rosto da inocência. É o único que não se dissipa no escuro.

 A Gaffe em Abril


  Desconfia sempre de um orador que traz a fúria escrita num papel.

Avô

Rafael Ochoa

A taça escorrendo os riscos de Abril e as flores roubadas de fragilidade e doçura quebradiças.

São do povo, as flores. Um chão que não tenho aqui, mas que existe nas mãos de vidro fosco que pousou na macia madeira antiga do meu quarto.

O dia rola inútil próximo da luz que entra pela janela e a mansa inocência das hastes do florido oscila subtilmente.

Tudo é simples:

O dia vai passar sem o peso de um longínquo Abril sobre os seus ombros.


A Gaffe num slogan

25/04/2018


Há slogans que são manifestos perfeitos e que resumem de forma exemplar a indignação de quem os assume e os transforma em bandeira. 

Não falo no Yes, we can, tornado pela desilusão em Yes! weekend! ou pela necessidade  de afirmação e resistência, no Yes, we camp, ou ainda pelo ameaçador America First.  

Falo, por exemplo, daqueles que funcionaram quase como previsão sinistra do que, não sei se apenas metaforicamente, veio a acontecer, como o on mangera les riches, ouvido durante Maio de 1789 e Novembro de 1799, em Paris.

Refiro-me aos mais poéticos, inscritos nas ruas de Maio de 68, como o ouvido e inscrito nos muros parisienses je suis comme un oiseau mort quand toi tu dors, que apelava de forma belíssima à consciencialização política dos estudantes que hesitavam.

Nunca gostei de ouvir slogans que não fossem susceptíveis de se transformar em lança espetada num determinado tempo ou acção específica, resumindo e revelando um sentir determinado.

Por isso me apaixonei pelo que li, inscrito num cartaz que vi passar nas mãos de um velho, na brevíssima e contida reportagem sobre a desilusão portuguesa que cavalga ainda, mintam o que quiserem.

 DE CRAVOS A ESCRAVOS