5.8.22

A Gaffe utilitária


Embora concorde com a esmagadora maioria e assuma que é proveitosa a aliança entre o útil e o agradável, há excepções que convém sublinhar.


Nem sempre esta união se torna eficaz e prazenteira. No amor, o útil e o agradável podem não coexistir, sem que disso venha grande mal ao mundo. Apaixonamo-nos com frequência por gente que não nos fornece grande coisa, a não ser um palmo de cara, e muitos palmos de outras coisas, para exibir nas feiras das nossas mais raquíticas vaidades. Entregam-nos os agradáveis momentos em que nos vingamos da amiga que nos roubava os atletas mais invejados da turma e um bando de horas em que perdemos o tino, olhos em bico, boca a babar, a amarfanhar lençóis e a gritar desalmadamente por Deus, Nosso Senhor - embora saibamos que este tipo de uivo não é considerado oração por Sua Santidade.
É evidente que a utilidade desta paixão está implícita, mas é daquelas que nos fazem corar na presença da nossa avó e, confessemos, encontramos o mesmo produto numa esquina qualquer, sem que para isso tenhamos de admitir sentimentos muito elaborados. É agradável, mas não é relevante, nem contribui para a sensação de vida preenchida - embora nos pareça que recheia uma pequena parte dela. A utilidade é passageira e não deixa rasto quando o homem adormece.

Talvez por isso seja de considerar a máxima que nos repete que deve ser bom amar um homem feio.

Apaixonarmo-nos por um homem desagradável à vista desarmada, possibilita a aparente vingança da amiga a quem roubávamos os atletas mais invejados da turma e em relação ao amarfanhar dos lençóis e aos gritos desalmados pela calada dos corpos, crescem as possibilidades de controlo do som, porque com um homem feio temos sempre mais botões.
A paixão sentida por um homem que não é bonito de morrer - de grandes mortes - assenta numa espécie de oportunismo - ou mesmo de vampirismo - nosso. Acabamos por amar o conteúdo, tentando não desfazer a embalagem, cuidando do laço e conservando o nó. Cravamos-lhe os caninos na alma e sorvemos, fazendo nosso aquilo que nos fez perder de amor. Aprendemos que é idiota o ditado que repisa que quem ama feio, bonito lhe parece, porque quem se apaixona por um homem destes, percebe rapidamente que tem, para além do aumento exponencial da possibilidade de não ser se traída, a acentuada certeza de ficar ao lado do homem que se escolheu à revelia da inconsciência de Cupido e isso não tem nada a ver com o que nos parece.