16.11.22

A Gaffe de S. Martinho

Piotr Kowalik
Depois de quase uma década de esquecimento, os festejos da noite de S. Martinho, neste recanto do Douro, saltaram do escuro orvalhado das sombras há uns - poucos - anos, autorizados e patrocinados pela minha avó.

A minha irmã, sem ainda ter reunido a coragem para os anular, deixa que mais uma vez se espalhem na eira secundária e desactivada que foi coberta por telas, longe da casa e perto dos fogos de risos coloridos e de alma em fogareiro fumegante.

O cheiro a castanhas assadas, jamais suportado pela minha irmã - o estômago da gentil senhora, de extremos histéricos, entra em convulsões frente a castanhas e a chouriço assado -, não se coaduna com o seu Dior creme, crème de la crème. Desce, sustendo a respiração e abanando a mão em frente do nariz. Encaixa as pernas, o charme e o glamour no carro que a levará aos grandes chefs de pequenas doses de mundos diferentes, com hábitos menos aromáticos, mas que a minha irmã prefere, tentando depois recuperar as forças nas receitas durienses e o ar nas varandas solitárias do Douro anoitecido.

Eu fico.

Não há nada como um oportuno pedido de ajuda no planear da festa para que uma tímida ruiva tenha o prazer de enfrentar uma inevitável carga de abraços e de sorrisos contaminados por olhares marotos.
Juntos, eu e o Douro, sentimos que o peso da coroa é menor e que há sempre a hipótese de um abdicar sem que ninguém sinta a falta de um ceptro.

A minha presença não é completamente aceite.
O Douro comigo hesita, oscila e bamboleia. Não sabe se me quer, se não me quer. Quer beijar-me a alma, já rendido, mas esperar que de joelhos eu rasteje.
Sorrio e sei que sou demasiado tonta e insignificante, exageradamente colorida.
Facilita o facto de eu sugerir inocência, achada num qualquer socalco de abandono citadino, enfiada num blusão de malha amarrotada, de manta a cobrir-me os ombros que faz frio, e com uns jeans que já viram melhores dias.

Há o notório despertar de uma muito vaga ternura solidária ou de uma solidariedade ternurenta assente no facto de parecer tão desprovida e despojada como este povo para quem a hospitalidade é decisão absolutamente pessoal e pautada por critérios pouco compreensíveis, porque pouco objectivos e muito pouco claros.

A aparência, aqui, é tida como nota capital - como pena capital? - e é um dos elementos responsáveis pelo ostracismo a que é votado o que é estranho ou pela sua aceitação eufórica e entusiasta. No Douro, a primeira impressão tem grande valia e deixa marcas indeléveis nos costados do incauto. Somos amados ou olhados com uma desencorajadora falta de confiança logo no primeiro lance do avistar. Errada ou não, é desta sensação primária que parte o julgamento inteiro que nos condena ou iliba.

Comigo o Douro hesita. Não sabe se há-de amar, se ser amado. Não pode adivinhar, o Douro, que a estrangeira não lhe vislumbra no desfiar da paisagem o mais pequeno fio, o mais pequeno elo da corrente que faz do desamor prisão perpétua.

Não sabe, não pode adivinhar. Por isso hesita.

É nessa hesitação que vou ficando. É nesse balançar que vou permanecendo ilesa e impune, evitando a agressão das pedras cor de cinza e da terra escura torcida pelas vinhas nos olhos do Douro e nos da sua gente.

Alguém escreveu, talvez numa noite de S. Martinho mais ousado e mais bebido, que a qualidade de vida de uma população, mesmo até o seu nível cultural e civilizacional - agora é tão moderno que se diga -, se reflectia no estado dos seus dentes.
Se assim visto, o nível referente à qualidade de vida, se assim pensados os estados, ou estádios, culturais e civilizacionais, depressa concluímos que esta gente é a negação de qualquer dentista.
Não há dentes e mesmo quando enegrecidos vestígios se vislumbram, estão cravados em gengivas magoadas que por pouco tempo mais suportarão os tocos e mesmo quando na boca de alguns mais novos, adquirem colorações estranhas, como se os donos mascassem folhas de tabaco a toda a hora.

Mas os velhos cantam mesmo assim e há raparigas que riem risos brancos enquanto soltam canções tilintantes e rapazes que estalam a língua e abrem a boca de espanto luminoso enquanto penduram luminárias por entre os ramos das árvores mais baixas que abrigaram da chuva.
As raparigas, de rechonchudas curvaturas tigresse, sobretudo loiras oxigenadas, de nails arco-íris, cruzam os braços encaixando-os entre a barriga e as mamas. Cochicham, tilintam, retinem, coradas e ansiosas, com as pernas vagamente abertas, roliças, mornas, nervosas, suadas. Sorriem, descaradamente tímidas, e esperam os olhos dos rapazes que, sempre aos pares, dividem a coragem da aproximação. Não há subtis manobras. Os jovens machos, de narinas trémulas, de parietais rapados e occipitais escanhoados, com melenas lustrosas no topo da cabeça, de Adidas brancas a cintilar nos pés, de calças justas que acabam nos tornozelos e Kispos enfolados, sorvem os cheiros distinguindo o das fêmeas e seguem a pista. Alguns não vão saber nunca o poder que trazem nos corpos morenos e duros. Mostram o capado, mas de forma explícita, que de tão nua e crua, perde toda a força e reduz-se ao exibir dos músculos moldados pela força do trabalhar a terra. Não há inteligência na forma de usar os corpos forçados e tesos e fortes.

As condições estão mantidas:

- Nada mais soará para além da música com sabor a terra.
- O rancho bailará só até às duas da manhã.
- Nada de foguetes.
- Não se darão asas gigantes à multidão que se adivinha a voar picado.
- Haverá rígido controlo sobre os desmandos do vinho que escorrer e um domínio claro sobre a euforia tonta que toca aflitiva as raias do histérico quando a noite avança e dança demais.

Que se baile então, obedecendo. O frio é da terra e a terra é de noite cantando fogueiras. Que baile esta gente, bailando no meio das quadras brejeiras. Quadrados, quadrículas marcadas no chão - não vá ser pisado pudor ou decência - com os aguçados lápis azuis dos olhos das velhas que sentadas vão roendo a carne que sabe a castanhas e sorvendo o vinho como a terra água.

Que se baile então debaixo de lâmpadas fracas de cores bem vistosas suspensas por fios cruzados, confusos, comigo perdida nos traços que fazem na palma da noite.

Que baile este povo sisudo e fechado em frente a uma ruiva de olhos pasmados que morre de inveja por não saber ser a festa na aldeia quando o pulsar é terra que dança; uma ruiva que se esgota numa dança de manta nos ombros a tiritar de frio, sem luz e sem brilho de rua em Paris.

Que baile este povo por saber que o Inverno é o baile que gela uma terra escura, mas que é também a dança que se quer largada, porque é uma espera do tempo do colorir das uvas.