16.11.22

A Gaffe e um rio

Erguia as mãos unidas e pousava o queixo nos dedos estendidos. Depois falava e as palavras escorriam pelos ombros, pelos braços, pelo peito, invadiam a mesa como se fossem água em toalhas de linho, tombavam e desciam agora enxames densos, lentos, de bichos e trepavam-me as pernas, comiam-me tecidos, desarranjavam-me o silêncio e desfaziam-se dentro do peito ou inscritas nas bainhas dos meus dias.

Não ouvi Saramago nessa altura. Olhava-lhe as palavras.

Depois cresci. Aprendi a domar os olhos.

Procurei-o anos depois. Lembrava-me das mãos unidas e do derramar de sons, do fato cinzento, dos compassos da voz, do ar de tartaruga sábia e secular, da secura do verbo, das ogivas das frases catedrais.
Entrou prolongado por Pilar. Apaixonei-me por Pilar por ter aquele nome. Por ter um mar ao lado e não saber senão correr para ele.
Ergueu as mãos unidas e pousou o queixo nos dedos estendidos. Esguios, como flores aquáticas com raiz no rio de Pilar. Depois falou e as palavras aguaram todas noutro lado. No lado de lá da sombra que mesmo assim é sombra, porque a luz pertence aos olhos da mulher e é na mulher que a obscuridade é uterina, que tem raiz por dentro.
Ouvi Saramago nesse dia, como se não o olhasse, que olhar e ouvir parecem ser antíteses quando é de água a terra que tocamos ou quando o rio e a terra ficaram sem fronteira.

E ouvi-lhe as palavras quando as vi.