14.6.23

A Gaffe dos anónimos

Se toda a gente tratasse do lixo que tem à sua porta, todas as avenidas ficariam mais limpas.

Um anónimo pode ser como o gato que o menino atira do segundo andar. Esbardalha-se-nos na cabeça quando deslizamos breves e leves pela brisa da tarde. Pode também ser a timidez que encontra no anonimato um romantismo seboso, mas esta última variante é menos vulgar.
A Gaffe não acredita que a ausência de referências que caracteriza um anónimo seja devida a uma falta de coragem. Apesar de tudo, tem de se ser corajoso até para se ser um energúmeno.

Esta energumunice tem, entre outras, dois ou três tipos, se assim quisermos, que interessa reter.

Há os anónimos que surgem do nada e que de dentes arreganhados, nos rosnam impropérios. Podem usar um petit nom para sossego das suas inseguranças e aparecem como o Príncipe das Trevas ou a Maluquinha de Arroios, muito literários, ou Manuel das Iscas, popular, ou ainda José Dias Aguiar, quotidiano. São os anónimos ligeiramente conservadores cujos insultos trazem um travo de moralidade azeda e de inflamações purulentas que cheiram a mofo e a catequese.
Por estanho que pareça, para além de imbuídos de um patriotismo rançoso, abanam os panos de ideologias e de causas até os rasgarem nos pregos que trazem na língua. Esquecem que para vencer uma batalha é preciso que reconheçamos que somos parte do inimigo. Não há tão grande perdedor como aquele que chega ao campo de guerra a acreditar que é o antónimo do adversário.

A Gaffe fica siderada com estes anónimos. Perante os seus comentários, fica catatônica. Jamais entenderá esta forma de se ser patético.

Há depois os anónimos com vago sabor a Pessoa.

São apanágio daqueles que comentam os seus próprios escritos. O inglês vê o elogio ou a exortação – geralmente não ultrapassam estas fronteiras - e finge acreditar que o que lê é alheio ao comentado. São os mais tristes e patéticos, porque revelam uma solidão desesperada. A inutilidade deles é como que privada, transformada numa ilusória companhia, num desejo doentio de se ser ouvido e de se ter alguém a quem responder.

São os que comovem.

A Gaffe conheceu, ao longo destas passeatas, pelo menos três tipos de comentadores anónimos que se distinguem de forma clara uns dos outros. Haverá outras modalidades. A Gaffe não tem microscópio para as analisar.

É evidente que o primeiro grupo não pode ser considerado danoso – muito pelo contrário. É constituído por pessoas que não subscrevem qualquer rede social e que não tutelam qualquer blog, mas que consideram interessante fazer o favor de acompanhar esta rapariga desequilibrada e opinar acerca das tolices que vai escrevinhando, usando um petit nom, ou deixando em branco, por defeito, a sua assinatura. São anónimos de uma amabilidade, gentileza, educação e absoluto bom gosto que - concordando, ou discordando -, contribuem para a elevação do espaço - tarefa a todos os níveis hercúlea. São acolhidos comme il faut, pois que as suas características, como é bom de ver, não são - nem de longe, nem de perto -, aquelas que são apanágio dos grupos que se seguem.

A eventual inconveniência dos dois últimos é directamente proporcional à facilidade com que insultam e cospem para o chão esquecendo que o piso conspurcado não é este, é o deles.

O segundo bouquet tem como expoente máximo os anónimos que passam por estas avenidas deixando invariavelmente um rasto de baba nauseabundo. Não chegam a ser insultuosos, porque não chegam a ser visíveis. Há que lhes atar ao cachaço um osso qualquer, para que pelo menos o cão brinque com eles. As suas hemorragias verbais não são completamente imundas, não estão na base da degradação moral, não são abominavelmente degeneradas. O raquitismo mental destas criaturas torna-as invisíveis. Não incomodam.

O terceiro grupo é de mais difícil trato. É impudente e infame. É um nicho com olhos de um porco que nunca olham para cima; com o focinho de um porco que gosta de esterco; com o cérebro de um porco que só conhece a sua pocilga e com o grunhir de um porco, que só grita quando dói. Estas criaturas abrem a boca de porco, colmilhosa e horrível, e deixam sair tudo o que pode encher de nódoas a roupa lavada.
Não têm forma, não têm cara, arrastam uma estrutura cartilaginosa, sem ossos, inconsequente e viciosa, mal equipada e insegura. Tornam-se protótipos de gente pequena.

São circuncisados mentais e deitaram fora a parte errada.

Foi precisamente por a Gaffe ter sido assediada por um representante desta última tribuneca - que parece saber tudo acerca da sua vida sexual - da Gaffe e não a do representante pois que não a tem - e com ela fantasiar no escuro da toca onde se masturba -, que a Gaffe opta por evitar comentários, mesmo correndo o risco lamentável de excluir aqueles que lhe seriam queridos, ou enriquecedores.

É que escreverem que esta rapariga é uma puta mal cheirosa (...) que tem uma obsessão por pilas (...), é uma terrível mentira.
Toda a gente sabe que a Gaffe usa Narciso Rodriguez.


A Gaffe recebeu uma inusitada visita de anónimos que acharam por bem deixar por estas Avenidas palavras sábias de aconselhamento.

Destaca dois, porque os pseudónimos que escolheram albergam um je ne sais quoi de poético, remetendo-nos para impérios bizantinos ou recambiando-nos para a decadência de Leste.   

Teodoro, comentador esporádico de alto gabarito, declarou saber o que nós - A Gaffe supõe que o plural é majestático - precisamos. A necessidade apontada poderia claramente ser suprida pelo Teodoro - que deve já ter o que sabe que nós precisamos cravado no rabinho há algum tempo - não fossem as nossas exigências de qualidade, a nossa capacidade de resistir à náusea, o prazo de validade e a urgência de microscópio para avaliarmos o estado de conservação.

Caríssimo Teodoro, o menino jamais conseguirá vislumbrar aquilo que uma mulher precisa. Há homenzinhos, elegantíssimo Teodoro, mui nobre e valente comentador, que nem com o advento do sonoro são capazes de participar no filme de uma mulher.A impotência torna-se ainda mais amolecida quando supõe que aos outros faz falta o que não se consegue dar.


Ivana afirma que os portugueses não estão interessados na verborreia da Gaffe.

Uma verdade. Uma cósmica verdade.

Ivana considera interessante vir dizer à Gaffe que os portugueses não têm interesse no que a Gaffe diz. A Ivana, como anteriormente se insinuou, nasceu no estrangeiro.
Aconselha, a Ivana, como paliativo, que a Gaffe arranje uma vida, já que não tem que fazer.
A Gaffe sempre sentiu que o verbo arranjar lhe soa a trabalho, a suor e a lágrimas. Prefere continuar a não ter que fazer e sugere à Ivana que siga este trilho. Deve ser desgastante, sábia seleccionadora, ter de pensar todo o instante em dizer apenas o que os portugueses estão interessados em ouvir, como patrioticamente provou que faz.

A Gaffe previne os seus comentadores incógnitos que comprou um cãozinho. Não é propriamente uma fera a temer, mas adequa-se à conjuntura presente, aos interesses de Portugal - dos pequeninos -  e a estatura dos interlocutores anónimos desta rapariga necessitada e sem nada para fazer.