duas Maikos lendo O-mikuji おみくじ - Japão -1910 |
Fui de repente convidada pela minha querida amiga para a acompanhar à festa de noivado - coisa simples - do seu ex, rapaz poderoso, escandalosamente rico, snob e detentor de uma personalidade pindérica, mesquinha, irritante e peluda. A minha querida amiga precisava de uma cúmplice para esgadanhar em surdina a futura consorte e nada melhor do que as garras da sua querida amiga para coadjuvar esta deliciosa tarefa.
O fui convidada é claramente um eufemismo para anestesiada, arrastada, amordaçada e drogada de forma a aceitar o convite sem espernear. Sou adversa a flutes onde cintilam as delicadas bolinhas de um Champagne daqui. Continuo a preferir, saloiamente, um alentejano maduro - semanticamente, polissemicamente -, com os sons de risos simples e saudáveis que fazem cintilar a alma.
Depois de alvoroçar a vizinhança com o facto de não existir no meu guarda-roupa um Armani a fazer pendant com o evento - coisa simples -, fui enfiada em Chanel emprestada, que eu destes tipos escolho Dior. Não preenchia as copas do vestido - a minha BOA amiga tem duas ogivas nucleares em vez de mamas -, mas o desenho flutuante, fluído, amplo e nada comprido do vestido disfarçava a ausência daquelas duas minas redondas que aparecem no fundo mar nos filmes debruçados sobre a II Guerra e no peito das meninas encorpadas.
Cabelo amordaçado numa banana ruiva - da Madeira, pois que tenho agora o cabelo mais
curto -, suplicando aos deuses a imobilidade forçada e enraivecida dos meus
caracóis de fogo furiosos, uma leve entoação na face a elevar os
olhos, um reforçar da extensão das pestanas e um bâton prudente
de brilho contido, suave e sem textura - nestes momentos a minha excelente
amiga soa tão influencer! -, chega-se aos sapatos.
O drama é shakespeariano.
Recuso-me a usar as tenebrosas plataformas - plantaformas, para as mais
dadas -, que equilibram a altura dos tacões, porque me fazem sentir, ou que
tenho graves problemas ortopédicos, ou que estou em cima de dois garrafões de
água do Luso, que são pesados, difíceis de transportar e, como sugere o nome,
metem água.
A alternativa foi calçada.
Uns belíssimos Dior com uma cor exacta - azul petróleo anoitecido -
a minha querida amiga é muito meticulosa e específica nestas alturas -, sem
plataformas - plantaformas ou tamparueres -, de betão, mas
com muito mais do que os sinistros 10 cm de agulhas e um
imperceptível meio número acima daquele que calço, que não há
outros que acompanhem e respeitem a atmosfera - apesar destas duas condições,
estava fora da lista o calçado da Thundberg.
Pensei que só me conseguiria equilibrar com eles calçados se me projectasse
para a frente, embora correndo o risco de, com esta inclinação, bater com os
queixos na braguilha do noivo, ou para trás, numa manobra circense, fazendo
pensar que tinham contratado para animar a festa a contorcionista do Cirque du
Soleil.
- Aguenta! - aconselha a minha querida amiga como se fosse prima do
Ulrich.
Aguento e, desconfiada e periclitante, procuro o apoio da maçaneta da porta que
se abre traiçoeira. Troco os pés, tropeço, caracóis vulcânicos já soltos,
um azul petróleo anoitecido espapaçado no chão, um Dior,
um meio número maior que o imprescindível, com um tacão cravado nos
estuques, um bâton de brilho contido todo esbardalhado na minha
leve entoação na face.
Sem qualquer réstia de dignidade que suportasse a queda, ergui, desfraldei e
fiz ondular a minha decisão como bandeira revolucionária e só não cantei
Grândola Vila Morena porque me perguntam, sempre que trauteio um lá-lá-lá ainda
que menos conotado com Abril, se me estou a sentir bem e nunca me sinto bem com
um par de sapatos de mais de 10 cm de perigo calçado. Sou uma menina de boas
famílias, caraças! Mais de 10, só se encaixarem no brasão.
Acabamos as duas de pijama esparramadas no sofá, a rever desencantada aquela porcaria
do Peixe Frito - Rabo de Peixe ou pesacada que o valha -, a
comer chocolate até ao tutano e aos confins da javardice, a comentar a leve
entoação das frases dos actores, sem reter nada da série pateta, nem
evitar tropeçar no fundo da segunda garrafa de vinho maduro alentejano.
Os homens que se foram, já são ex e que se casem ou que façam coisas.
Ninguém quer saber.