11.5.24

A Gaffe n’O Monte dos Vendavais


Eram três, se não contarmos com a morte que se agarrava às saias e aos saiotes, aos laços e às golas que asfixiam, às mangas, aos corpetes, às luvas e às toucas debruadas.
Passeiam no planalto pantanoso e escoam-se depois na luz vermelha de Haworth que se introduz nas almas como labareda muda, inexplicável. Ficam sozinhas a torcer tecidos com os dedos aguçados, a tecer cintilações e livros, de olhos preenchidos por ausências com um desprezo imenso pelo mundo. Sérias, desmesuradamente sérias, isentas de ironia, fechadas por dentro, sem haver dentro provável ou previsível, porque o que é gerado e fica no interior das almas chega primeiro das vidas que se cruzam. Elas não cruzam as vidas de ninguém.

Falo das Bell, as três do presbitério. Assim. Como nos livros que assinaram.
Currer, Ellis e Acton Bell. Como elas querem.

Mas soa tão melhor dizer os nomes delas. Charlotte, Emily, Anne.

Das três, escolho Emily que vejo junto das outras posando para o inquietante retrato que elimina o irmão, expulso do quadro.
Emily é o clarão da medonha superfície encrespada que esconde o inexplicável ferver dos sentimentos, a improvável fúria das emoções, as sagas prodigiosas protagonizadas por figuras que nunca viu viver.

Nunca a entendi completamente. Nunca compreendi Haworth vazado na sua alma perturbante, sombria e introvertida, capaz de descrever o medo absoluto, a devastação, a mais intrépida das ardências e o maior dos fulgores.

Raros são os que se cruzam na vida com o furor endoidecido do vento e com a inquietude da luz vermelha incandescente do sol que invadem o presbitério e que encontram apenas os seus reflexos em Wuthering HeightsO Monte dos Vendavais - onde Emily Brontë consegue lancetar a escrita, abrindo a ferida, rasgando personagens intemporais que tornam o livro inquietante, poético, nodoso, agreste como raiz cravada na terra de Yorkshire.

Dentro do escrito, Heathcliff e Catherine, são projecções mútuas, são a invenção da mais interior, cavernosa e quase visceral das duplicidades reflectidas. São os centros fulcrais das obras-primas. É Catherine que o revela quando Brontë a faz dizer:

- Heathcliff is me.

Heathcliff e Catherine somos nós, em silêncio a arder.