18.5.24

A Gaffe parada


O homem colocou os sacos no chão. São de plástico e abrem-se quando escorrem os pacotes de arroz e de açúcar, pesados. Abrem-se lentamente como se derretessem. O homem é velho. Tem uma samarra com uma gola de pêlo daninho e calças de fazenda suja. Tem meias de lã grossa e chinelos de quarto acabados e rotos.
Espera o autocarro e não sabe que eu o estou a ver a apanhar do chão uma beata que o homem que esperava o autocarro anterior cuspiu ao entrar. Acende um fósforo que se apaga. Está frio. Não sabia que o frio apagava fósforos. Pensava que só o vento que vem do mar consegue apagar as chamas. Depois, um outro fósforo. Desta vez, com a mão em concha, o homem reanima o pedaço de tabaco. Suspira ou penso que suspira. Talvez seja apenas o movimento do sorver do fumo.
Quando chegar o autocarro, o homem vai lançar a beata ao chão depois de arrancar uma última baforada. Vai apanhar os sacos que se abrem e arrastar os pés enfiados nos chinelos de quarto roto e suspirar. Desta vez tenho a certeza, vai ser um suspiro. Vai empurrar a mulher de saia azul e blusa de malha castanha que está junto dele. Vai empurrá-la para chegar primeiro. Vai subir curvado de samarra com gola de pêlo rançoso e espalhar no banco ao lado do que escolheu para se sentar, os sacos que se vão outra vez abrir e derreter. Vai ficar calado e olhar pela janela. Tossir de vez em quando ou escarrar para um lenço encardido que traz no bolso. Vai cheirar mal. Ele e o arroz dos sacos.

Quando o autocarro chegou, o homem segurou os sacos, cuspiu a beata e empurrou a mulher de azul e de castanho. Quer chegar primeiro. Ao subir, curvado e de samarra com pêlo desfeito, perdeu um dos chinelos de quarto. A meia de lã grossa tem uma cor cinzenta. Voltou a descer e a mulher de azul e de castanho ultrapassou-o.
O homem deixou partir o autocarro. Pousou os sacos no chão, sentou-se e suspirou.

A Vida é a paragem do autocarro.