2.7.24

A Gaffe e um mito


Quando todos pensam a mesma coisa, é porque ninguém pensa grande coisa.

Esta espécie de aforismo salta-me aos olhos quando deparo com a massa extasiada e unânime que desfila e é transmitida em directo pelas televisões, até à mais agoniante e trágica das exaustões, perante uma selecção de futebol erguida como heroína, mito ou divindade.

Todos os consensos, aqueles que são oriundos de maiorias esmagadoras que tendem para uma eventualmente perigosa unanimidade, comportam-se como multidões que raramente - assusta-me dizer nunca - conseguem manter a racionalidade exigida a um comportamento consciente e isento da perturbação do instinto. A massa resultante deste amolgar do pensamento crítico e desta compressão dos elementos díspares que aniquila a diversidade ou a diferença de opinião, expulsa invariavelmente, e muitas vezes com violência, todo o pensamento que não lhe obedece e que é observado como ofensa à segurança do comum e construído como unificador.

A opinião que se exprime acerca da selecção portuguesa de futebol onde se continua a venerar a divindade Ronaldo, impede que se coloque os pés na terra - lamacenta, mas mesmo assim palpável -, acto essencial à manutenção do estranho equilíbrio entre uma espécie de euforia sobrenatural e o mais banal dos pensamentos práticos.

Mesmo sendo verdade termos já Eusébio ao lado de Amália - receio apenas que se decida encaixar no meio a irmã Lúcia -, reconheço sem qualquer ponta de alheamento a genialidade deste jogador incomparável, o petiz madeirense pobre e desgraçado que atingiu o topo do Evereste dos pontapés em campo.

Não é isso que está em causa.

O que está em causa é suspeitar que Ronaldo pode ser a mais recente defesa de uma das múltiplas variantes do pensamento de Roland Barthes e o que me apercebo, no caso deste específico jogador, é da exemplar construção de um mito que, como todos os mitos, heróis ou heróis mitológicos, resulta da frustração que se encontra na ausência de Resposta, da falha (Barthes, o meu querido sábio, chama-lhe manque) de um elemento agregador que possibilite a coesão de um povo, da urgência, tantas vezes inconsciente, de local de partilha, um lugar-comum que possibilite a resposta unânime do colectivo ao desconhecido, ao inseguro, à treva e à sensação de incompletude vivida no presente.

Ronaldo é assim a matéria-prima que enforma o mito encarado, barthianamente, como contraponto a uma falha, a uma ausência colectiva de respostas e a sua transformação em herói divino - já existe uma velhinha que afirma ter largado as muletas, voltando miraculosamente a andar sem apoio, quando caminhava para depositar flores aos pés da estátua do futebolista - é quase imediata porque contém as qualidades essenciais aos heróis mitológicos: é consensual, é grupal, pode ser mesmo societal, é comum, é agregador, unificador, é passível de se tornar símbolo - sobretudo inconsciente -, de um povo que teme a sua visível desconstrução e que tem urgência de se edificar do nada, é identificador, é simples, é reconhecido como o mais básico ideal de honestidade pura com rastos de uma ingenuidade primeva, é a projecção estável de uma comunidade em desequilíbrio, é a Resposta clara a uma falha sentida trágica e sem solução pela colectividade, sendo portanto capaz de se erguer como projecção mitificada de um povo.

Quando todos pensam a mesma coisa, é porque ninguém pensa grande coisa ou porque a coisa pensada foi tornada divindade e como todos os deuses, a coisa assim pensada é moldada com o barro dos que a pensam.

Imagem - Romeu e Julieta - Frank Dicksee

Nota de rodapé - Sim, meu queridíssimo e amabilíssimo Senhor. Creio ser também destas "ausências" o surgir da foice ou da suástica.