11.7.24

A Gaffe jornalista


Pouco tempo depois de Abril de 74 - contava o meu avô, que se divertia sempre que o fazia -, uma jornalista toldada pelas renovadas atmosferas, trepava às montanhas e aos penhascos para mostrar ao país a miséria em que o povo se encontrava. Entusiasmada, eufórica, nervosa, revelava o estado de total analfabetismo que se instalara, durante o tempo das trevas, nos montes e nas serras dos degredos. Uma torrente de escandaloso choque. Na breve entrevista que fez a uma velhíssima senhora de lenço preto a amarrar-lhe as rugas, repetiu afoita as sacramentais perguntas.

Sabe o que é o fascismo? Sabe o que é a Assembleia da República? Sabe o que é um deputado da Nação?

A senhora não sabia.

Sorrindo mateira e a meio do difícil questionário, decidiu que era altura de calar a trepidante repórter.

- E a menina, sabe o que é um almude?

O manquejar jornalístico tem, como se lê, tradições que vão perdurando.
O analfabetismo - em todos os seus versículos - também, mas tal se tornará uma outra história.

Lembrei-me deste pícaro episódio quando, há alguns dias, cinco canais de televisão acompanharam em directo um autocarro que transportava jogadores de futebol do hotel para o estádio - e com recurso a drones, não se fosse perder o topo do veículo. Agudizando a gravidade do ocorrido, dizem - sobretudo os que o perderam -, que o jogo era significativo, não um pechisbeque nas agendas apopléticas do campeonatos. A transmissão tornava-se num ápice a indigência bacoca do jornalismo televiso em todo o seu esplendor.
 
Dir-se-ia de interesse público acompanhar a selecção portuguesa de futebol no seu trajecto rumo a uma derrota. Mesmo para uma leiga como eu, digam o que quiserem, talvez o malogro sofrido pudesse significar que, numa inversão da clássica arena romana, os leões foram trucidados e comidos pelos gladiadores.
Dir-se-ia que tem sempre repercussões nacionais observar a saída dos jogadores do autocarro do amor, pé ante pé, olhares de soslaio à conta das divas, sobrancelhas cuidadas e depiladas as pernas, não vá o país perder as gravatas timbradas e os passarinhos de raminhos de louro nos biquinhos, ou o chispar das primeiras entrevistas do que nos informam que este vai ser um jogo difícil, a equipa adversária é boa, mas vamos lutar pela vitória.

Podemos dizer o que quer que seja, que tudo se consegue mergulhar na plácida superfície da penúria analfabeta - e desonesta - que perdura há várias décadas no jornalismo português, pois que é dele que se fala.
É evidente que se pode recusar este pindérico - e perigoso - modo de se mostrar o mundo. É evidente que existem abertos outros canais de informação relativamente mais dignos, mas sejamos honestos, meus caros, sem esta espécie de estupro televisivo e telegénico, não conseguiríamos avaliar condignamente a envergadura e a potência anímica dos atletas – não interessa nada saber quem são, a quem pertencem, ou se equipa é unida e vai lutar pela vitória, pois que já sabemos de antemão que sim -, nem seríamos capazes de prometer uma sacrificada ida a Fátima, de rastos, se os rapazes cumprisseem dentro do campo o que repetem até à eternidade aos microfones, mesmo não sabendo o que é um almude, ou desconhecendo que na tasca à beira mar plantada o comer quer alho.

Nota de rodapé - Seja como for, a nossa selecção perdeu. Uma derrota muito próxima dos Santos populares. A Gaffe foi convidada para os festejos. Gosta. É uma rapariga simples, muito dado a folguedos. Desde que não apareça a Mariza a gritar pelo povo da terra dela ou o Represas a choramingar porque quer amar, amar perdidamente, está com o povo, com pimentos, sardinhas, entrecosto e com a selecção, carago!

Se tivesse arranjado tintas para pintar a cara e um CD da Rosinha ou da Marlete Suzete, lá ía a Gaffe a abanar a bandeira e ajavardar as sardinhas assadas e a binhaça madura enquanto martelava.