Somos obrigatórias testemunhas, necessárias vítimas do narcisismo da divindade. A divina miséria narcísica acaba na consequente elevação do mártir humano. Somos maiores, porque subjugados à tirania da vaidade dos deuses que aniquilam a vontade intrínseca de não termos consciência, de sermos nómadas dentro do nada dos bichos, de não nos erguermos para o mistério inútil da obra dos deuses.
Somos sedentários por espanto e na adoração. Somos sedentários por consciência de nós e rasgamos os joelhos, idólatras da obra dos deuses.
Esta ausência do nómada no que somos, é cultivo dos tiranos e dos deuses, sempre narcísicos.
Somos imobilizados por exigências, por números, endereços, por cartões, certidões, por atestados, por casas alfanuméricas, por vigilância de dados, por redes, por obrigações, por deveres, por prazeres, por direitos, por aplicações, por teletrabalho, por registos, por memorandos, por lojas de cidadãos quietos, por saldos, por entregas ao domicílio, por encomendas online e por miríades e irrisórios universos do tamanho de vermes que nos confinam, porque parados somos mais fáceis de dominar.
Perdemos as extraordinárias capacidades e aptidões dos nómadas e é nesta fixidez que nos controlam e que nos subjugam.
Por narcisismo dos deuses e dos vermes, estamos quietos.
A derradeira fuga, a forma mais poderosa de vencermos os tiranos e os deuses, está no entrançado das palavras. A consciência de nós, narcisicamente oferecida pelos deuses e imobilizada pelos déspotas, para melhor domínio de ambos, tem o
contraponto nas palavras que permitem as luminosas viagens de todos os nómadas
por todos as paisagens.
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