29.7.21

A Gaffe altamente qualificada

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Causa-me alguma perplexidade ouvir a toda a hora lamentar o êxodo da geração mais qualificada que foi parida em Portugal.
Não porque não lamente a necessidade de emigrar dos moçoilos e das moçoilas que se esbardalham contra a completa ineficácia de quem traça directa ou indirectamente parte dos seus destinos. Incomoda-me, isso sim, o modo como se caracteriza esta geração.

A geração altamente qualificada é entrevistada a cada passo e refere do alto das suas adjectivações que não vai votar nas presidenciais porque desconhece os candidatos, que não sabe quem é Paula Rego, porque não é de cá, mora na outra margem; que estuda anatomia dez horas por dia e que não está para se incomodar com aquele que viu uma ou duas vezes na TV, e que é agora o Presidente da República, e que nos atira à cara um sonoro a gente vamos às urnas quando morremos; que diz prontus, a queima é para o desbunde;  que escreve o verbo haver sem vestígios de h, atrevendo-se a dizer quando corrigida que foi por engano ou por cansaço; que acredita que Camões é uma daquelas coisas de Pessoa e que Pessoa era um ardina que até tem uma estátua sentada; que desata a rir quando ouve referir A Montanha Mágica, por pensar que falamos da Feira Popular e que, depois de muito mais que não se diz por se ter vergonha, se despede com um fica bem desatando a cuspir promessas de banalidade nas ruas do nosso descontentamento.

É curiosa a confusão que se faz entre licenciado e qualificado. Portugal produziu nas últimas décadas um orgulhoso número de licenciados. O sistema de ensino enfiou uma quantidade avantajada de jovens em funis específicos, empurrou a carne amontoada e, conforme a cor do curso, a cor do funil, soltou um fio amorfo de engenheiros civis, engenheiros informáticos, engenheiros mecânicos, engenheiros seja do que for, enfermeiros, médicos, físicos, químicos, assistentes sociais, advogados, gestores, programadores e mais que aqui não lembra, que estudaram dez horas por dia um manual próprio ficando sem tempo para Thomas Mann. Licenciou-os, mas é discutível afirmar que os qualificou. Uma das componentes essenciais requerida por uma real qualificação é aquela que nos reporta ao entendimento global do que acontece, introduzindo nas licenciaturas uma visão humanista, uma abrangência do fenómeno vida, uma capacidade de comprometimento, de participação activa na acção de a melhorar. Infelizmente, o que permite uma, digamos para simplificar, atitude mais filosófica, ou se quisermos mais musical, perante a vida, não existe ou foi de tal modo menosprezada, tida como inútil e sem qualquer perspectiva de saída profissional, que acabou banida da área do conhecimento e do saber destes licenciados que se não passaram a ignorar por completo as chamadas Humanidades, as olham de binóculos como coisa bizarra avistada por uma curiosidade sobranceira, mas de interesse nulo ou não rentável.

Desatamos aos pinchos e aos gritos perante o sucesso internacional de um destes poucos jovens portugueses realmente qualificados - conheci um que lia Thomas Mann para tentar complementar o seu estudo na área das neurociências, outro que lia sucessivamente Crime e Castigo, porque entendia que Dostoiévski o ajudaria a compreender um paciente e ainda outro que acreditava que Bosh era um dos precursores da psicanálise e que tentava comprovar a sua tese perante a comunidade internacional de psiquiatria - e inchamos de orgulho patético e parolo, como se o triunfo de um deles fosse a coroa de louros da multidão que emigrou, como se a embaixada do país onde o jovem brilhou viesse no dia seguinte tocar-nos à campainha para nos dar os parabéns. Esquecemo-nos que ao lado de um português triunfante existe, sem notícia pomposa, dois russos, três alemães, quatro japoneses, sete polacos e dezenas e dezenas de outros portentos oriundos dos quatro cantos do mundo e que, sem eles, muito provavelmente não haveria a notícia do português na TVI.

Somos licenciados na pequenez direccionada para determinados objectivos demasiado concretos. Temos pequenos fins altamente definidos. Falta qualificarmo-nos para a interdisciplinaridade de modo a que deixemos de confundir um canudo, mesmo emigrado, com o canavial por inteiro.

É portanto aterrador quando percebemos que a próxima geração, a do turbilhão da pandemia, será a menos preparada e qualificada de sempre.  


E eis, a 23/08/2021, a argumentação do Benjami que me deixa muda e queda, arrependida pelo facto de me referir apenas à insuficiente preparação humanista daqueles que procuram deter e controlar o raciocínio matemático e científico isolando-o da face das humanidades e penalizada por me ter exaltado, sem ter recorrido ao que o Benjami me reporta, e por ter ficado perante o abandono das licenciaturas na área das Humanidades - que muitas vezes não exige, pelos seus caminhos ínvios e labirínticos, a objectividade, imprescindível da ciência.     
É importantíssimo este comentário que de certa forma - e em simultâneo - complementa, corrige e por certo contraria, o rabisco nervoso desta rapariga tonta que, apesar de tudo, continua a pensar que se o médico tiver lido Dostoiévski, será bem mais capaz de entender a natureza mais íntima do paciente, a fragilidade da sua alma perante a dor ou perante a doença, que nada têm a ver com a sua debilidade física visível e, por indução, a formular superior diagnóstico. Continuo a acreditar que se descura de forma muito perigosa esta vertente que tem raízes na Condição Humana, mas que vai passando pela margem mais distante de um mundo exclusivamente preocupado com a eficiência prática ligada ao idolatrar cego da ciência.    

Conheço infecciologistas brilhantes que não leram a Montanha Mágica. O argumento que as Humanidades e as Artes são os veículos da educação e que são portas para o mundo é uma meia-verdade. Nunca gostei deste discurso porque o argumento esvazia-se quando as Ciências e Economia são esquecidas. Também seriam mais "qualificados" se todos compreendem-se sobre imunidade inata; imunidade celular - pelo menos saber o que é e a função do anticorpo e da célula T (e digo todos).
Cálculo 1 e álgebra Linear também dão jeito já que os adolescentes coreanos e japoneses também sabem e aumenta a capacidade lógica. Para não falarmos que se todos tivessem lido referências mínimas em epidemiologia, estatística e aprenderem programação estaríamos todos bem preparados e ninguém chateava o senhor(a) do departamento de IT.
Saber realmente cozinhar é uma atividade opcional para alguns, para outros não - mas epa quem não sabe fazer um refogado é desqualificado e não partilha a mesma cama comigo

Fui excessivo a ilustrar o meu ponto. Contudo, nomear que alguém é qualificado significa apenas que conseguiu reunir as capacidades técnicas para desempenhar minimamente a profissão que aquele curso pretende responder. Sair do Le Cordon Bleu qualificado significa apenas que domina técnicas da cozinha francesa - não é Chef, não sabe outras cozinhas, não sabe administrar cozinhas; não aprende finanças, não lê nem aprende os pratos do Em Busca do Tempo Perdido. Se um "cozinheiro amador" o lesse, talvez abriria um restaurante temático só com estes pratos - mas a escrita do Proust não garante sucesso ou falência imediata. Permitiria a este cozinheiro trazer parte de si = tornar o seu trabalho mais profundo para si e para quem o rodeia.

É mais equilibrado que o conhecimento de cada um de nós seja diferente; que boas soluções para um problema com o doente possam advir de ter passado mais horas no trabalho com outros doentes vs ter trocado ideias com colegas estrangeiros vs ter lido Crime e Castigo. Voltando aos infecciologistas, a criatura que conheço parece um Dr.House, pelos diagnósticos que faz mas não conhece Mann. Nem a Greta Thunberg conhece. Faz trabalho médico e humanitário e tem as experiências que quer na sua vida pessoal - que lhe dão maturidade.

A vida é finita, os canônes de qualquer coisa não são deuses e há circunstâncias que nos trazem grandes mundos que não se exploram em tão pouco tempo