15.7.21

A Gaffe em círculos



A temperatura facilmente se aproximava dos 38º.

Empurra-nos para o interior dos muros, para o interior das sombras das árvores, dos buchos e das pedras das escadas de granito guardado do sol pelas trepadeiras. No interior protegido das sombras escapa-se à asfixiante atmosfera que faz estourar os cachos de buganvílias e levanta a poeira dos caminhos que levam à casa.

É o calor a desenhar círculos concêntricos, apertados e distintos. Claramente sentidos, evidentemente adivinhados. É o calor que nos sorve e arrasta como títeres, impotentes marionetas movidas pelos fios de fogo.

Ao fim do dia mesmo a penumbra escalda e são as salas interiores, onde a temperatura desce abruptamente, as procuradas.
Neste fechar quente e claustrofóbico, o interior da sala maior, daquela em que as janelas se abrem para Norte, é escolhido invariavelmente. É aqui que a noite é aguardada e pela noite fora nos falamos.

Estes anéis circulares que se vão estreitando, são concêntricos e se analisados sem réstia de emoção, parecem indicar a única direcção daqueles que, como agora nós, enredados neles acabam por seguir. Fatais, empurram-nos para dentro, para o mais ínfimo ponto onde se iniciam ou, nesta perspectiva, onde se acabam.

Se observar com a mais profunda atenção e afastamento a sala onde a noite se inicia com toda a gente pousada, vejo-me longe de tudo, com uma ausência completa de vontade e sem mácula ou culpa pelo facto. Afasto-me, não por impulso desgarrado, teatral, furioso e momentâneo, mas porque não sinto falta das palavras. Talvez seja feliz e como diz o outro A felicidade não saiba contar histórias, mas, no entanto, esta minha espécie de se ser feliz é como o bicho-monstro que as crianças suspeitam que existe debaixo da cama nas noites sem sono. É uma felicidade de antes de dormir. Uma estranha suspeita de que depois do beijo da mãe que nos sossega, há mais coisas que ninguém nos diz. É uma felicidade minada pelo receio de escuro. É um sentir que há alguém, central, que nos invade e nos sorve e nos deixa exaustos e escandalosamente vazios e alarves; que faz o ar que respiramos permanecer mudo, tombado a um canto, tocado pelas mãos de um rapazinho estranho, demasiado crescido para a idade, que não tem força para lhe arrancar um choro, mas que fascinado aflora a frescura imaginada das horas em silêncio; que faz o não desejar romper mais desafios, para que o tempo se transforme numa gata manhosa a dormir na sombra.

Há objectivamente neste calor um maléfico sorver da alma dos outros.

Tornamo-nos ninguém porque deparamos de forma abrupta com a poderosa e avassaladora e incongruente vontade de sentir o silêncio da água que não corre.

No cerne, no mais profundo interior dos interiores, há o primeiro círculo que absorve tudo, mesmo a seiva nos olhos da vontade dos outros. Deixamos de sentir para sentir para ele, por ele, através dele.
É isto o calor aqui no Douro.

Diriam os entendidos que é o círculo d’oiro.

E eu gosto de ferrugem.