Ouvi dizer que a forma de percebermos que deixamos de ser amados é sentir que o nosso beijo deixou de ter qualquer significado para aquele ou aquela que beijamos, sobretudo quando já significou tudo.
É uma formulação bastante poética e os poetas raramente se enganam.
Há no entanto um dispositivo escondido dentro de nós que detecta o fim de um amor sem qualquer necessidade de ler desta forma osculatória os sentimentos do outro.
A erosão do amor faz-se de forma lenta, mas perceptível.
Tem a ver com o nosso regresso à banalidade.
O desamor é o confronto com a banalidade. Daí sentirmos que a solidão nos volta a preencher os dias. Nada é mais deserto do que nos descobrimos apenas mais um ponto acrescentado à multidão de pontos que nos são iguais.
Deixarmos de ser amados é voltar a saber que os rabiscos que fazemos nas páginas do caderno de apontamentos não rivalizam com os esboços de da Vinci; que os traços que deixamos arrastando palavras pelo papel não são cometas; que numa gare de partida - e raras são as gares a que chegamos - somos aquele casaco que se esqueceu no braço de uma cadeira e que ninguém guarda com receio da aproximação do dono; que não pisamos nuvens quando andamos, nem os nossos gestos fazem deslizar os rios com brandura, porque caminhamos para o emprego e temos nos braços os documentos que preenchemos na véspera; que não nos alimentamos do perfume das rosas, porque temos arroz de bacalhau para o jantar e o cadáver da loiça do almoço a apodrecer na banca; que não existem universos mágicos no peito e que a único truque de ilusionista que conseguimos fazer consiste em arranjar tempo para retirar o verniz das unhas escaqueiradas ou aparar a barba antes do horário do autocarro; que não temos a eloquência de um senador romano e que os nossos discursos são como os sopros com que se enchem balões; que não somos Charlie todos os dias que passam, porque não nos pomos a jeito; que não espargimos luz quando aparecemos, porque a lâmpada da casa de banho está outra vez fundida e não nos apetece voltar a trocá-la; que não somos passarinhos que debicam grãos de orvalho, porque a alheira nos fez azia e não há antiácido em casa e que a porcaria do gato que não queríamos em casa nos rasgou as cortinas e não temos os véus dos olhos de quem quer que seja como abrigo.
Deixarmos de ser amados é regressarmos ao que somos sem qualquer filtro.
Somos banais, quotidianos, comuns, vulgares, habituais e corriqueiros, mesmo sabendo que as palavras são sinónimas.
Deixarmos de ser amados - ou deixarmos de amar, que também serve -, mostra-nos uma realidade que nos é adversa, a única que descobrimos ser a nossa.
Não precisamos de um beijo para nos apercebermos disto.