Usava agulhas grossas e a lã era Dralon 5, resistente e duradoira.
Matizava, torcia, entrançava e entrelaçava pontos que inventava com os que tinha herdado. Como um maestro de duas batutas, construía melodias mansas e mornas que usávamos durante os Invernos.
Lembro-me que as peças tricotadas mantinham um vago aroma de gardénia, quase nada, quase tudo, e que as cores que povoavam, este perfume e estas peças, eram quase sempre densas, sólidas, luminosas, quentes e imprevistas, como se um pedaço de Verão se tivesse perdido no entretecer da malha.
Se olho agora o que nas ruas encarna o glamour que é o retorno assumido a um tempo tricotado, sei que, se abrir as gavetas da velha arca de mogno liso ao canto do quarto em que foi urdida a minha infância, o vago aroma a gardénia voltará a tremer nas minhas eternas malhas Dralon 5.
Lembro-me, já mais crescida, da minha Jacinta que trazia todos os Sábados das arcas para os quartos de cima, os brancos jogos de lençóis de linho.
Brancos, sempre brancos, brancos que de tão brancos doíam.
Alguns tinham bordados a cheio na dobra que expunham. Flores ou frisos a ondular arabescos que as fronhas repetiam. Outros eram rendas. Entremeios urdidos à mão, brancos, brancos, no negrume de Inverno.
- Vá brincar, menina. Vá apanhar sol e deixe trabalhar quem sabe.
A Jacinta abria as asas de lençóis sobre as camas como quem atira redes de pesca aos mares sossegados das manhãs de Sábado. Cheiravam bem essas manhãs. A linho lavado, a sabonete e a alfazema que a Jacinta guardava em saquinhos laçados com fitinhas de cetim nas arcas dos lençóis brancos a doer.
Ficava a ver aqueles pássaros largos de asas, a abrirem o breve voo sobre os ninhos. Fechava os olhos. Pelos olhos fechados aspirava o odor daquele esvoaçar lavado e de açucenas.
Quarto após quarto, após quarto, após quarto. Seguia-lhe os passos. Os lençóis brancos a dardejar bordados.
- Vá brincar lá para fora com os manos, menina!
A luz do lá fora pelas janelas. Reflectida no voo dos pássaros como penas. O cheiro a luz lavada e a saquinhos de alfazema.
- Ajude então com as fronhas, menina. Vá lá Deus saber porque é que o avozinho a deixa aqui, a andar atrás de mim - e sorria, parada por instantes, de mãos cruzadas no regaço de onde a ternura subia até aos olhos.
Lembro-me que chorou naquele Sábado de morte.
Ouvi-lhe as lágrimas como lençóis abertos e doridos.
Entrei devagarinho no quarto e vi-a sentada na cama que foi da minha avó. De mãos em concha, uma por cima da outra, num abandono branco e envelhecido.
Tinha-se enganado. Foi sem querer. Nem sequer pensou. Não sabe como aconteceu aquilo. Foi o hábito. É a velhice, menina.
Chorava tanto.
Ajoelhei-me. De joelhos venero imagens santas.
Entrou ali para mudar lençóis que não se mudam, mudos os que ficaram inúteis como trapos, e ficou ali a desfraldar, a apalmar, a estender saudade.
- A avó da menina faz-me tanta falta - treme. É do frio.
Abro a gaveta. Retiro o xaile que a minha avó usava nos entardeceres mais ásperos de negritude em que as crianças não brincam lá fora.
Sento-me na cama, pouso as minhas mãos na concha das mãos enrugadas da Jacinta e as duas cobertas pelo xaile, sorrimos baixinho, baixinho, baixinho, para não inquietar as lágrimas.
- Vá, Jacinta, anda. Eu ajudo com as fronhas.
Mas agora é Outono e não há um ninho nas árvores.