À entrada da adolescência, decidi que tinha de ostentar um piercing, algures na paisagem do meu corpito ainda breve. Era uma decisão irrevogável até a ter comunicado à minha mãe.
Fui terminantemente proibida.
A minha revolta entrincheirou-se nas acusações de tirania, de insensibilidade, de falta de cumplicidade e de mais uma ou duas tiradas dramáticas até desabar inútil e acabrunhada.
- Sou tua mãe. Sê-lo-ei para sempre, minha querida. Não sou e jamais serei a tua melhor amiga.
Estás proibida de te mutilares.
Invoco este incidente com imensa ternura e profunda gratidão. Creio que foi em consequência dele que percebi a dimensão do comprometimento que implica a maternidade e recordo-o quando vejo da varanda, pela noite dentro, um carro empapado em jovens machos universitários fardados e bêbados que retiram da mala – da mala do carro, insisto -, um jovem colega que parece bastante divertido, pese embora os ganidos e a necessidade de ser levado em braços.
Os jovens machos de traje académico que ficaram para trás, erguem-lhe agora as pernas e o farrapo é transportado deitado de rosto voltado para o chão, para que vomitar não implique paragem.
Estranhamente, pela calada da noite, chega-me à memória o triste episódio do meu frustrado piercing.
Lamento profundamente que a mãe de cada um dos protagonistas da praxe a que assisto nunca lhes tenha negado o que exaltava na minha adolescência e que supunha ser a vitória e a glorificação da maternidade. Foi uma pena que nunca tenham ouvido:
- Sou tua mãe. Estás proibido de te mutilares.
| René Maltête |
Sou, é bom de ver, uma declarada inimiga das praxes académicas, mas acredito que uma memória das bacanais do Império ido e enterrado tenha ainda seguidores, mesmo com os seus laivos sadomasoquistas, absolutamente desagradáveis e muito pouco sofisticados.
O que me recuso também a aceitar é a pobreza pindérica dos trajes das meninas que desfilam de negro, aos pinchos e aos gritos pelas avenidas da cidade. Não há qualquer justificação plausível para comportamentos que tocam o patológico e nos levam directos aos frascos da automedicação inevitável. Tornam urgente a ingestão de relaxantes e de substâncias que nos fazem esquecer a mediocridade com que se brinca a qualquer coisa sem nexo no recreio de uma instituição criada para albergar doentes mentais no século XIX.
No entanto, mesmo sob o efeito de milagrosas pílulas, é impossível não entramos em choque com o que as universitárias se atrevem a vestir.
O traje feminino é escandalosamente deselegante. Os materiais com que é executado são miseráveis e o corte do tailleur é mesquinho e faz lembrar as catequistas velhas e solteironas da província onde o demo só não perdeu as botas, porque não é parvo para percorrer os trilhos das cabras e não aprecia calcar bosta.
A capa, demasiado quente para a época em que normalmente é usada, para além de favorecer odores pouco compatíveis com a flor da idade de quem a usa, chega aos tornozelos ou é várias vezes dobrada no pescoço, de acordo com a etapa académica que se frequenta. Esta mimosa obrigação transforma as doces raparigas em frascos - alguns bastante encorpados, alguns bidões, - sem gargalo ou deixa-as com os mais deselegantes ossos do corpo prontos a sofrer um escrutínio minucioso, sendo os únicos passíveis de observar.
Os sapatos de plástico, os dolorosos e patéticos sapatos de plástico, golpeiam a tragédia, encerrando a catástrofe.
O conjunto lamentável obriga necessariamente que se desvie o olhar para outras paragens mais libertas deste fado e é então que lançamos âncora nos cabelos das donzelas.
Os sapatos de plástico, os dolorosos e patéticos sapatos de plástico, golpeiam a tragédia, encerrando a catástrofe.
O conjunto lamentável obriga necessariamente que se desvie o olhar para outras paragens mais libertas deste fado e é então que lançamos âncora nos cabelos das donzelas.
Este olhar fugitivo acaba quase sempre num renovado acidente. O preto total faz realçar as guedelhas e são guedelhas desgrenhadas, jubas soltas e sujas - durante o período da praxe, segundo informação obtida, não é permitido prender o cabelo, - e melenas que não sonham sequer que existe o meu muito querido, talentoso e deslumbrante amigo Miguel Viana.
Meninas, é valoroso e de capital importância a frequência universitária, mas citando, numa adaptação livre, o assustadoramente culto Abel Salazar, uma universitária que não percebe que de traje académico se transforma em morcego com restos de rato morto na cabeça, nem da primária deveria passar.
Há que renovar, minhas queridas. As touradas também são tradição e não deixam de ser macabras e ofensivas.
Há tempo que de imemoriais se tornaram certos nas histórias, fecharam quatrocentos novos alunos numa sala com capacidade para suportar menos de metade. Ficariam de joelhos durante duas horas com portas e janelas vedadas.
Começaram a suar.
A temperatura elevou-se a níveis insuportáveis, insustentáveis. Empapados e com dificuldades sérias em respirar, alguns desmaiaram, outros choraram, outros vomitaram e uma teve um ataque de pânico. O histerismo misturou-se com o cheiro a suor e a vómito quente e nauseabundo.
O António chegou com meia hora de atraso. Para que não fossem abertas as portas, quiseram que ele os seguisse, de joelhos, para onde quer que fossem. O António agarrou a farda do mandante e obrigou-o a morder-lhe o hálito e a suspeitar da segurança da cana do nariz.
Foi o António que abriu a porta a tempo de retirar e levar em braços a uma farmácia próxima uma rapariga a quem tinham surripiado e perdido a bomba de asma.
Foi o António que abriu a porta a tempo de retirar e levar em braços a uma farmácia próxima uma rapariga a quem tinham surripiado e perdido a bomba de asma.
Não usam braçadeiras com uma cruz macabra, nem as elegantes e sinistras fardas dos facínoras da Guerra, nem o António pertence à Resistência.
É apenas a praxe.
O esvaziamento, sem qualquer retrocesso, espantosamente rápido, do capital simbólico e cultural que se observa no país, alia-se a uma despudorada ausência ou aniquilamento de valores e comportamentos cívicos e à incapacidade de os reconhecer, fomentar, promover e transformar em inevitabilidade social e talvez seja consequência da cada vez mais nítida ausência de filósofos, ensaístas, críticos, gramáticos, arqueólogos, geólogos, bibliotecários, arquivistas, historiadores, arquitectos, pintores, escultores, músicos, compositores, actores, encenadores, realizadores, bailarinos, coreógrafos, cenógrafos, jornalistas e outros tantos humanistas em vias de extinção.
Resta-nos assistir ao paupérrimo espectáculo do encastrar do capital que vai restando, o da mediocridade, num Dux, numa espécie rasca de Peter Pan ressequido que há vinte e cinco anos mantém a ilusão da imobilidade, a mesquinhez de uma espécie de poder raquítico e deturpado, a permanência do idiotismo no mais imbecil dos lapsos temporais e que acaba por ser símbolo da mais completa inutilidade da existência, conseguindo ainda por cima ser um excelente exemplar de canastrão burgesso.
Depois de tudo isto, a Gaffe percebe que não faz a mínima diferença encarnar uma descabelada revolta contra tudo o que vagamente soa a praxe. Os petizes vão continuar a esfolar o que vier à mão, a arrastar pela lama fancaria e jóias, a ajoelhar na bosta os que os elegem, obrigando-os a comer terra e urina, a espoliar os tristes nus cravados de espinhos, obrigando-os a beber absinto até não haver amanhã, rasgando-os, rebentando-os contra as esquinas das ruelas e vielas das vidinha dos doutores que assobiam obscenidades sorteadas pelos charros e cerveja.
Há sempre rebanhos de portadores de silêncio, dominados por bandeiras, cajados, domesticados, amestrados, batinas, enganos, mitificações e slogans.
Raros são os que resistem.
Que se danem todos por fim e por completo.