Há no Douro uma mulher madura e opulenta, com os dedos gretados a cheirar a alho esmagado e nádegas roliças que senta no banco comprido, à mesa, depois dos homens terem devorado o que ela cozinha e abalado.
Tem na frente uma malga de azeite com alho triturado, sal, cebola em rodelas finas e salsa esmagada. Vai molhando dentro pedaços de pão de milho. Atenta e sossegada.
- A menina quer um caninho de pão?
Um caninho!
Um caninho de pão e eu com medo. Medo de não gostar do caninho de pão. Medo que ela descubra que fui eu a pecadora que no ano anterior atirou para dentro da cisterna a fatia de pão embebido em leite e polvilhadas com açúcar e canela.
- Mais outra, menina? Tire mais outra! Se comeu uma tão depressa é porque gostou. Tire outra e não se acanhe.
Eu acanhada a retirar outra, com o primeiro pedaço da primeira a empapar-me o palato, a nausear-me. Medo de não saber olhar para a mulher. Medo de a ver apenas como quero, de lhe entregar o que não é dela. Um lenço escarlate com rosas escuras e franjas sedosas ou um avental a cheirar a frutos com bolsos folhados. Ela que tem cabelo preto e encardido, preso na nuca por dois ganchos velhos e uma bata ruça aos quadrados azuis e verdes, a apertar à frente. Cheira a estrugido. É feia. Tem braços gordos e dedos papudos com gretas castanhas e a cheirar a alho, os gestos a cebola, e eu tenho medo de não gostar do caninho do pão molhado em azeite e de não saber porque tenho medo, aqui.
Não sei porque roubo e escondo pedaços deste espaço e me espanto porque o que fica me parece tão roído sabendo que recortei esquinas e refiz imperfeições de modo a que nada altere a medida do certo ou conspurque a elegância do brando, para que nada incomode o lugar onde fico, de maneira a que tudo seja compreendido, compreensível, sem o inquietamento, sem o desconforto, sem o inssossego do que não se entende. O modo como fico, o modo como o faço, é dócil, é aquietado. Não existe a arquitectura inquieta do desconforto. Fico como se entra numa casa que não deixa memória e onde nada vem connosco quando saímos e deixamos que a porta bata atrás de nós.
Tudo é tão leve assim como uma frase feita ou um cliché. O que fica é tão plano e liso como o tampo da mesa onde a mulher pousa a tigela.
- A menina quer um caninho de pão?
Não. Não quero.
Tenho um caninho de medo do que roubo.
Não sei porque roubo e escondo pedaços deste espaço e me espanto porque o que fica me parece tão roído sabendo que recortei esquinas e refiz imperfeições de modo a que nada altere a medida do certo ou conspurque a elegância do brando, para que nada incomode o lugar onde fico, de maneira a que tudo seja compreendido, compreensível, sem o inquietamento, sem o desconforto, sem o inssossego do que não se entende. O modo como fico, o modo como o faço, é dócil, é aquietado. Não existe a arquitectura inquieta do desconforto. Fico como se entra numa casa que não deixa memória e onde nada vem connosco quando saímos e deixamos que a porta bata atrás de nós.
Tudo é tão leve assim como uma frase feita ou um cliché. O que fica é tão plano e liso como o tampo da mesa onde a mulher pousa a tigela.
- A menina quer um caninho de pão?
Não. Não quero.
Tenho um caninho de medo do que roubo.