29.3.22

A Gaffe de lady Chatterley

23/02/2015


O conflito de gerações pode parecer nulo quando a proximidade e a cumplicidade parecem fazer dele um ligeiro atrito que surge quando se percebe que existem opiniões que não são convergentes acerca dos óscares.

Para evitar este gotejar de inutilidade, a Gaffe e a sua estimada avó decidiram substituir a célebre noite de gala de transmissão em directo, por uma fita com peso e medida capaz de originar um debate acalorado acerca da fidelidade ou da infidelidade do que se vê ao que se leu.

Escolheram O Amante de Lady Chatterley desencantado na estante de um dos rapazes da casa.

Sentadas no sofá, de mantas da Covilhã nos joelhos, bolachinhas com pepitas de chocolate ao dispor, um bule com chá quente, preto e comme il faut, as duas raparigas preparam-se para comparar D.H. Lawrence com a adaptação de quem não lhes interessou saber o nome.

A primeira cena mostra uma loira Constance com um bâton demasiado carmim que se despe ao som de uma musiquita bastante ranhosa e ronhosa. Renda a renda, colchete a colchete, liga a liga, lacinho a lacinho, a rapariga demora tanto tempo a tirar as calcinhas que a Gaffe começa a suspeitar que não vai tão cedo sair daquele quarto. Nada que as embarace. Estóicas, aguentam a nudez da moça até ao momento em que a rapariga começa a acariciar-se e desata a gemer.

A Gaffe suspende as mordidas na bolachinha.

Sente os olhos da avó, de soslaio, a mirar o ruborizar da neta que tenta manter a postura descontraída que começa a escapar pelas paredes. Beberricam o chazinho.

O constrangimento agrava-se quando por ali dento entra um compassado Oliver Mellors todo nu e, prolongando o gritedo da moçoila, reduz o Kama-Sutra ao programa da Grécia, ou seja, a um conto de fadas.

A Gaffe espreita a avó preocupada. Receia que a senhora esteja roxa, igual a si, de língua inchada e olhos desorbitados.

A Senhora, impávida, comenta os cortinados do aposento onde o forrobodó é mais do que o previsto.

A Gaffe concorda e refere a beleza do móvel do fundo.

A avó gosta do castiçal.

A luz das velas do castiçal elogiado continuam a iluminar nádegas ali, pernas acolá, maminhas soltas e espalhadas por demasiado grandes planos e a Gaffe está segura que por instantes a clarear mesmo a pilinha do acrobático actor.

A Avó refere a nouvelle vague e questiona a origem do filme.

A Gaffe não sabe, porque apesar de meia hora ter passado ainda não se ouviu ninguém falar.

O grande plano do rabiosque de Mellors encaixado algures nas pernas da rapariga que não parava de gritar e de esfacelar as costas do vigoroso rapagão, encontrou a Gaffe enregelada, a suar constrangimento, incapaz de balbuciar fosse o que fosse e a desejar ardentemente que a avó tivesse desmaiado. Por sua vez, sentiu a senhora petrificada, de chávena de chá suspensa a olhar de lado sem pestanejar para o embaraço desta rapariga, só comparável ao que sofreu quando tropeçou na cauda do vestido e se esbardanhou escada abaixo na noite em que tinha decidido conquistar o homem que a apanhou estatelada aos pés ou quando ofereceu no Natal a caixa de jóias horripilante à pessoa que lha tinha oferecido no ano anterior.

Foi a entrada em cena de Clifford e a sua disponibilidade nua, muito nua, e crua para se juntar àquilo que se via, que levou a concluir que a obra não estava de todo bem adaptada.

- Valha-me Deus, querida! O seu irmão andou a ler a obra errada.

 

Não tenhamos dúvidas. O choque geracional, por muito ténue que seja, deve sobretudo ser evitado numa noite de óscares.