Andrzej Malinowski |
Em tempo que já lá vão, era eu menina e moça, levada de casa de meus pais, introduziu-se-me na cabeça a ideia peregrina de abandonar tudo o que tinha iniciado e planeado levar a cabo e a bom porto e me transformar em comissária de bordo.
Com altura suficiente para esmagar rivais prováveis, magríssima, porque o choque alimentar e o jat lag gastronómico - tinha chegado de Paris há pouco tempo... -, me tinham arrancado o apetite voraz que sempre me caracterizou, e ruiva até à mais ínfima sarda, acreditei ter hipóteses de ser seleccionada pela Emirates Airlines num processo que decorria num dos hotéis mais famosos do Porto.
Do alto dos meus vinte e pouquíssimos anos, entrei sozinha e segura, de calças e de caracóis soltos na sensação de futilidade do acto, que se vinha tornando a cada passo que dava na alcatifa fofa uma tolice monumental a que não era indiferente um piquinho de desafio em relação à opinião – desfavorável, como se esperava - que não se tinham cansado de me ceder sem gastos.
Fui seleccionada.
Não foi grande vitória. Num rio de Barbies bastava nadar até à margem e não chocar com os Kens.
Deveria estar presente dois dias depois, manhã cedo, no mesmo hotel, mas desta vez com o cabelo apanhado, saia travada e tacões dispostos a humilhar o Evereste. Esta pose estereotipada que assumi com prazer, prova que muitas vezes a submissão ao imaginário provavelmente machista não significa um abdicar da dignidade feminina, desde que cumpra os objectivos a que uma mulher se propõe.
A noção de vanidade e de vacuidade da minha candidatura foi crescendo ao lado da minha vontade de vencer o que se tinha tornado apenas um desafio sem consequências práticas.
Na manhã aprazada, a minha irmã aceitou adereçar-me. Condescendente, elaborou o uniforme, cumprindo as exigências descritas, e prendeu no meu pescoço o colar que me permitiria comprar o avião.
- Usa-o - refilou, quando protestei - tens de os convencer que ser … aquilo que queres ser é a tua verdadeira vocação e não um emprego mal pago que te permite andar de cabeça no ar.
Muito Grace Kelly, anui à vontade da minha irmã.
Seria transportada por ela que não queria perder uma pitada da minha provável humilhação.
Lembro-me que o trânsito - naquela manhã como em todas as outras -, nos obrigou a sair com uma antecedência significativa que foi perdendo vantagem à medida que nos aproximávamos do destino que nos fez parar à porta do hotel sem qualquer respeito pelo fado.
Foi nesse instantinho que acordaram em mim a pirosa, a ranhosa, a pateta e a totó, sem que fossem travadas pela sobranceria da mana que olhava de soslaio pelo retrovisor o condutor que se tinha atrevido a buzinar e a barafustar contra o impedimento loiro e altivo que se tinha assestado no caminho e que agora empunhava o rímel pronto a perfurar os olhos ao condutor irritado.
O casaquinho?! Levo ou não levo? Ai, que levo. Ai, deixa-mo vestir. Ai, que me fica mal. Ai, que tenho de o tirar. Ai, que não me parece bem. Ai, que levo? Ai, que não levo? Ai, que dizes? Ai, que pareço uma catequista! Ai, e se não o levasse? Ai, que pareço uma ninfomaníaca sem ele! Ai, que vou mesmo assim. Ai, tu não achas que o devia levar vestido? Ai, levá-lo no braço é suburbano!
- Não vás. Estás com um atraso de um minuto. Manda o casaco.
Mas fui.
Desatei a correr esgaivotada, de tacões a tentar escapar dos interstícios das pedras e a tropeçar depois no pelinho do soalho, de saia a apertar-me a correria, de colar a dar-a-dar e com o soutien a saltar-me pela boca.
Cheguei três miseráveis minutos depois da hora estabelecida e a minha fulgurante carreira de comissária de bordo terminou ali, porque - disseram eles - tinha atrasado a partida do avião.
Passados anos sobre esta minha leviandade aeronáutica, se não continuo a atrasar os aviões com paroladas imbecis, é porque vou de barco.