Mark Heine |
No tempo das areias, já lá vão vinte anos, Agosto era passado em casa da minha avó.
Um Agosto inteiro às vezes de nortada, com noites repletas de frio e de ligeira chuva.
As famílias largavam os adolescentes e a minha querida Luzia era arrastada para nos cuidar.
Chegávamos aos poucos. Como salpicos de ondas.
Primeiro a Rosário e seu o irmão que já perdeu o nome na minha memória. Tinha o cabelo cortado à rapazinho e olhos pretos. Altiva e elegante como uma gazela.
Depois, o Jorge, o meu primeiro amor de tarde friorenta, quando todos corriam pela praia molhada por uma véspera de chuvisco.
O Francisco, nadador e bravo, olímpico rapaz das ondas e do sal, que trazia a irmã, Sónia dos cabelos loiros, um pardal traquina.
O Pedro a rugir como a ameaça dos vulcões.
Os meus irmãos chegavam com os mais velhos, no centro de Agosto.
E num Agosto qualquer chegou o João. De calças de linho branco, eterno descalço, e camisolas de algodão gigantes, para desalinhar a vida. Belíssimo, silencioso e distante como um cisne.
Passei por ali.
As famílias largavam os adolescentes e a minha querida Luzia era arrastada para nos cuidar.
Chegávamos aos poucos. Como salpicos de ondas.
Primeiro a Rosário e seu o irmão que já perdeu o nome na minha memória. Tinha o cabelo cortado à rapazinho e olhos pretos. Altiva e elegante como uma gazela.
Depois, o Jorge, o meu primeiro amor de tarde friorenta, quando todos corriam pela praia molhada por uma véspera de chuvisco.
O Francisco, nadador e bravo, olímpico rapaz das ondas e do sal, que trazia a irmã, Sónia dos cabelos loiros, um pardal traquina.
O Pedro a rugir como a ameaça dos vulcões.
Os meus irmãos chegavam com os mais velhos, no centro de Agosto.
E num Agosto qualquer chegou o João. De calças de linho branco, eterno descalço, e camisolas de algodão gigantes, para desalinhar a vida. Belíssimo, silencioso e distante como um cisne.
Passei por ali.
A casa foi vendida e morta. Não existe.
A minha irmã usa Armani e ácido na bolsa.
O meu irmão é longe.
O Jorge do meu beijo transformou-se em fumo.
O Pedro aprendeu a humilhar vulcões.
A Sónia é actriz. Via-a no palco. Nunca deu por mim, nunca dei por ela.
O Francisco em Madrid escreve postais quando o Natal é mais sozinho.
A minha irmã usa Armani e ácido na bolsa.
O meu irmão é longe.
O Jorge do meu beijo transformou-se em fumo.
O Pedro aprendeu a humilhar vulcões.
A Sónia é actriz. Via-a no palco. Nunca deu por mim, nunca dei por ela.
O Francisco em Madrid escreve postais quando o Natal é mais sozinho.
O João morreu.
Restam as gaivotas e a Capela onde à noite corríamos para espreitar as bruxas e testar o medo.
Era o tempo das areias.
Às vezes há nortada.
Sempre acreditei que as imagens que retemos na memória possuem, também elas, a memória. Mais diáfana, mais esvaída do que nossa, mas igualmente labiríntica.
Quando esquecemos, fica no lugar do esquecido apenas a memória que havia nos objectos, aquela que eles possuíam e essa é como pó ou areia. Nela podemos cravar a unha, arrastar o dedo, desenhar, deixar escorregar os grãos por entre os dedos, acreditar que as nossas recordações foram forjadas, ilibando a vida.
Quando se trata de memória há sempre em nós uma implacável impotência. Agarram-se à alma pedaços de vida que só dementes podemos desejar perenes.
Esquecer é deixar tombar o pó e redesenhar depois por cima dele. Isto deixa-nos calmos.
É bom esquecer. É seguro e criativo ao mesmo tempo. No entanto, vemo-nos às vezes a confundir a memória com o memorizado. Não sabemos, por exemplo, se realmente fomos de alguém ou se apenas passou por nós a vaga ilusão de pertença. Qual foi o estado de alma que nos invadiu, qual foi o apagado, qual o desenhado depois do esquecido. Não que tal nos aflija. Já foi passado. Já temos história. A memória atenua a febre e dá-lhe a suave pacatez da convalescença como única peça para reviver.
Lembramo-nos como se tudo tivesse acontecido num lençol de areia. Quando nele entramos o corpo é arranhado pelas rugas das dunas e pelo frio da água que as vai alisando, mas aprendemos depressa a fechar os olhos.
Restam as gaivotas e a Capela onde à noite corríamos para espreitar as bruxas e testar o medo.
Era o tempo das areias.
Às vezes há nortada.
Sempre acreditei que as imagens que retemos na memória possuem, também elas, a memória. Mais diáfana, mais esvaída do que nossa, mas igualmente labiríntica.
Quando esquecemos, fica no lugar do esquecido apenas a memória que havia nos objectos, aquela que eles possuíam e essa é como pó ou areia. Nela podemos cravar a unha, arrastar o dedo, desenhar, deixar escorregar os grãos por entre os dedos, acreditar que as nossas recordações foram forjadas, ilibando a vida.
Quando se trata de memória há sempre em nós uma implacável impotência. Agarram-se à alma pedaços de vida que só dementes podemos desejar perenes.
Esquecer é deixar tombar o pó e redesenhar depois por cima dele. Isto deixa-nos calmos.
É bom esquecer. É seguro e criativo ao mesmo tempo. No entanto, vemo-nos às vezes a confundir a memória com o memorizado. Não sabemos, por exemplo, se realmente fomos de alguém ou se apenas passou por nós a vaga ilusão de pertença. Qual foi o estado de alma que nos invadiu, qual foi o apagado, qual o desenhado depois do esquecido. Não que tal nos aflija. Já foi passado. Já temos história. A memória atenua a febre e dá-lhe a suave pacatez da convalescença como única peça para reviver.
Lembramo-nos como se tudo tivesse acontecido num lençol de areia. Quando nele entramos o corpo é arranhado pelas rugas das dunas e pelo frio da água que as vai alisando, mas aprendemos depressa a fechar os olhos.