21.7.22

A Gaffe por entre os dedos

Mark Heine

No tempo das areias, já lá vão vinte anos, Agosto era passado em casa da minha avó.

Um Agosto inteiro às vezes de nortada, com noites repletas de frio e de ligeira chuva.
As famílias largavam os adolescentes e a minha querida Luzia era arrastada para nos cuidar.
Chegávamos aos poucos. Como salpicos de ondas.
Primeiro a Rosário e seu o irmão que já perdeu o nome na minha memória. Tinha o cabelo cortado à rapazinho e olhos pretos. Altiva e elegante como uma gazela.
Depois, o Jorge, o meu primeiro amor de tarde friorenta, quando todos corriam pela praia molhada por uma véspera de chuvisco.
O Francisco, nadador e bravo, olímpico rapaz das ondas e do sal, que trazia a irmã, Sónia dos cabelos loiros, um pardal traquina.
O Pedro a rugir como a ameaça dos vulcões.
Os meus irmãos chegavam com os mais velhos, no centro de Agosto.
E num Agosto qualquer chegou o João. De calças de linho branco, eterno descalço, e camisolas de algodão gigantes, para desalinhar a vida. Belíssimo, silencioso e distante como um cisne.

Passei por ali.

A casa foi vendida e morta. Não existe.
A minha irmã usa Armani e ácido na bolsa.
O meu irmão é longe.
O Jorge do meu beijo transformou-se em fumo.
O Pedro aprendeu a humilhar vulcões.
A Sónia é actriz. Via-a no palco. Nunca deu por mim, nunca dei por ela.
O Francisco em Madrid escreve postais quando o Natal é mais sozinho.

O João morreu.

Restam as gaivotas e a Capela onde à noite corríamos para espreitar as bruxas e testar o medo.
Era o tempo das areias.
Às vezes há nortada.

Sempre acreditei que as imagens que retemos na memória possuem, também elas, a memória. Mais diáfana, mais esvaída do que nossa, mas igualmente labiríntica.
Quando esquecemos, fica no lugar do esquecido apenas a memória que havia nos objectos, aquela que eles possuíam e essa é como pó ou areia. Nela podemos cravar a unha, arrastar o dedo, desenhar, deixar escorregar os grãos por entre os dedos, acreditar que as nossas recordações foram forjadas, ilibando a vida.
Quando se trata de memória há sempre em nós uma implacável impotência. Agarram-se à alma pedaços de vida que só dementes podemos desejar perenes.
Esquecer é deixar tombar o pó e redesenhar depois por cima dele. Isto deixa-nos calmos.
É bom esquecer. É seguro e criativo ao mesmo tempo. No entanto, vemo-nos às vezes a confundir a memória com o memorizado. Não sabemos, por exemplo, se realmente fomos de alguém ou se apenas passou por nós a vaga ilusão de pertença. Qual foi o estado de alma que nos invadiu, qual foi o apagado, qual o desenhado depois do esquecido. Não que tal nos aflija. Já foi passado. Já temos história. A memória atenua a febre e dá-lhe a suave pacatez da convalescença como única peça para reviver.

Lembramo-nos como se tudo tivesse acontecido num lençol de areia. Quando nele entramos o corpo é arranhado pelas rugas das dunas e pelo frio da água que as vai alisando, mas aprendemos depressa a fechar os olhos.