19.7.22

A Gaffe num Santuário

Peter Paul Rubens

Apoia o queixo na palma da mão, com a cabeça ligeiramente inclinada e o cigarro em brasa demasiado próximo das ondas brancas do cabelo. A luz reflectida na pulseira de oiro larga, fechada por um minúsculo cadeado, projecta uma pequena forma ovalada que não sossega, agitada como uma menina que desfaz as tranças a baloiçar na inquietude. Às vezes, no colarinho branco, o pequeno reflexo luminoso parece uma joia intemporal e frágil, intocável, segura ao tecido pela serenidade que surge quando a minha avó fica mais atenta ou como um insecto de luz que pousa atraído pela brancura incendiada da camisa.

A senhora recorda transgressora a noite em que o viu pela primeira vez  a nudez masculina.

- Há homens, minha querida, que fazem da nudez uma caverna. Outros há que dela fazem céu aberto. No entanto, a timidez é o último reduto dos despidos.

- Como a terra dos homens perseguidos?Lembrei-me dos Santuários dos foragidos medievos, da imagem breve de um homem desgraçado pela multidão a despenhar o corpo nas pedras de uma catedral e a despojar a alma toda macerada num derradeiro uivo salvador.

- Um Santuário? – A minha avó sorve o fumo do cigarro. O insecto do oiro da pulseira outra vez inquieto.

A senhora e o silêncio debruçado sobre mim.

- A ideia de Santuário sempre me agradou. A última promessa, a derradeira exalação da esperança, o torniquete suspenso por um espaço físico intocável. Mas a nudez não é essa espécie de cadáver adiado que procria.

A senhora contradiz o aforismo.

- A nudez abrevia os homens. Ficam sós diante dos espaços que os circundam e a solidão tem o corpo que eles despem. Nus, resumem o que temem no descampado do corpo que revelam e a timidez é o coração do medo, o último reduto onde eles tombam, mas que não tem a essência do que salva.

A minha avó sorri e atira o fumo devagar, em fio, de encontro ao reflexo da pulseira que parou, depois acaba:

- Nu, o homem descobre se tem asas de falcão ou de morcego, mas é sempre um outro olhar a proteger-lhe o voo. O Santuário, minha querida, é sempre uma mulher.