Andres Alvarez |
A primeira - e última - vez que se embebedou, a Gaffe acordou num Carnaval sem saber onde estava, numa cama muito aprazível, mas de todo desconhecida, sem saber quem a tinha despido, quem a havia deitado e o que realmente se havia passado, embora o estado em que despertou anunciasse um enorme vazio nocturno, sem ponta por onde se pegasse.
Lembra-se que, sem duche, se vestiu à pressa e que procurou a saída sem sequer investigar o seu passado. Nunca soube quem a tinha albergado. Nunca quis saber, não descobrisse ela tenebrosos rastos de pecado.
Tinha na cabeça todas as bailarinas do Crazy Horse desde os anos sessenta a desfilarem em simultâneo levantando as pernas e gesticulando de sorriso escancarado, com luzes coloridas por tudo quanto era canto, o que no seu caso é fantasmagórico, já que prefere, baile por baile, dança por dança, os Riverdance.
Jurou a pés juntos - não muito juntos, porque não se equilibrava convenientemente - que não tinha bebido em exagero.
Era verdade.
Acabou por descobrir pouco tempo depois que um minúsculo dedal de vodka a faz estalar completamente, assanhando todos os instintos, acordando tigres brancos da Sibéria, mas que se ultrapassa esta medida, se procura mais na caixa de costura, entra de imediato no limiar do nada.
Um dedal e basta! Depois não escapa o gato nem o periquito.
Este pouco dignificante resultado é similar àquele em que nos atrevemos a beberricar o dedal do amor.
O primeiro travo é sempre incendiário e entrega o enganador conforto da anestesia ou a euforia de nos vermos invadidos por fogo de artifício. Tornamo-nos únicos, o universo reduz-se a dois umbigos e todos os planetas rodopiam em redor de quem se tornou a nossa gravidade.
Tal como no caso do primeiro dedal, se o do amor é bebido até ao fim acaba-se conduzido, no lugar do morto, com a esperança de chegarmos sãos e salvos ao destino com que sempre sonhamos. Geralmente espera-nos a ressaca com uma voz tonitruante que nos grita na manhã de enjoos que não devíamos ter bebido tudo. Esquecemo-nos que desatamos a tentar modificar a criatura por quem nos apaixonamos, procurando que se molde ao que esperamos, mesmo sabendo que não foi por esse ideal que desatou a bater descontrolado o nosso coração. O resultado é descobrirmos que adormecemos com um desconhecido e no amor não basta sabermos o nome de quem acorda connosco na cama. Convém conhecermos mais qualquer coisinha.
Não beber seria a solução. Evitava-se, nas manhãs de ressaca, tranformar Balanchine ou Pina Bausch em bailaricos de província, os Lagos dos Cisnes em charcos de parrecos, o Circe du Soleil em strip-tease manhoso de festa de solteiro ou despertar a sentir que engolimos todo o stock de solidão disponível.
No entanto, este beber um dedal de amor é nosso apanágio, a nossa inevitável condição.
Sendo assim, fatal como o fado amaliano, o ideal é ter quem nos ensine o modo de o fazer - e de o cantar - e que nos prove que é apenas e só nos dedais de vodka que se pode adormecer sem dar importância a quem temos ao lado.