22.2.23

A Gaffe a festejar


Entrou como alteração climática.

Que tenho de sair. Há demasiado tempo que não me divirto. A festa de aniversário reúne toda a gente que conheço.

- Enfim, quase tudo o que é gente, assim do planeta, porque a tua irmã também foi convidada.

Estou miserável.

- Não! Estás óptima. Nunca estiveste tão perfeita.

Tenho nos pés umas pantufas em forma de ratazanas, um pijama azul melado com um slogan a rosa desbotado - Where Are You Friday? - e o cabelo parece ter servido de ninho aos animais que trago calçados.
É admirável como se torna fácil reconhecer que a mentira pode ser também um pequenino oportunismo egoísta que se escapa inconsciente quando dela depende a nossa satisfação instantânea.

- Ninguém vai reparar que não te divertes desde que o "coiso" foi enfiar o braço até ao cotovelo no pipi das vacas do Minho, por causa daquilo dos ovos. Isto não soa nada bem, mas tu entendes o que quero dizer. O homem é estranho.

Suspiro.

- Meu amor, só as freiras esperam que o paraíso chegue, enfiadas numa cela doentia. Nós que somos saudáveis temos GPS.

Desisto.

Duche, vestido preto, colar pequenino, sapatos confortáveis e cabelo desgovernado que não tenho forças para legislar.

- Estás tão Meg Ryan … claro que antes da pobre ter mumificado.

Não faço ideia se devo, ou não, considerar elogiosa a aproximação. Só recordo a actriz na cena em que simula um orgasmo numa cafetaria qualquer e, para ser honesta, sempre achei que as minhas simulações eram melhores.

- Leva o casaco com capuz de vison, que de noite faz frio, como diz a velha. Dizes depois aos ecologistas parvos que lá vão estar que só mataste os netos dos bichinhos que estão agora protegidos, porque que não sabias que tinhas de aturar a porcaria dos vegan.

Inútil ver esclarecido o assunto.

Voamos.

A festa de aniversário de um amigo merece sempre as asas de um albatroz. Neste caso de um albatroz tresloucado e impaciente, capaz de transformar em lenço de Isadora Duncan as criaturas que se atrevem a pisar as passadeiras. Receei inúmeras vezes chegar ao local do encontro com gente no tejadilho do carro ou colada ao pára-brisas.

É extraordinário o encontro com aqueles que conhecemos, ainda que vagamente, mas que não encontramos há muito tempo.
Foi curioso ter verificado que a esmagadora maioria dos homens - trintões, já que a festa se compunha deles - usava barba. Um amontoado de barbas muitíssimo bem desenhadas, rasas, pequenas, grandes, gigantes, todas lustrosas, todas delineadas, todas perfumadas, todas hidratadas, todas design – diria a velha – todas hipster, todas aborrecidas e todas prontas a seduzir, esquecendo o facto de, pela quantidade, nos confundir os donos e nos obrigar a tentar identificar o barbudo através de outras características menos mediáticas - as calças, por exemplo, ou o que dentro delas nos chega aos olhos. Foi interessante encontrar as que provavelmente são usadas para evitar o laser, os cremes e as ceras depilatórias, pois que, de tão justas, quando arrancadas, sacam toda a pilosidade por onde passam e, no caso dos mais incautos, a piloca vem apensa. Conseguir um movimento largo dentro delas é um mistério quase do tamanho de um dólmen, pese embora não se tenha avistado nenhum megalítico esteio por entre a multidão.

Outra minudência observada reporta-se às camisas todas de um branco imaculado dos moçoilos, com o colarinho apertado a anunciar o esmagamento da jugular que ouve, já morta, jazz – do mais puro e do mais duro - e vai debitando considerações acerca das performances recentes da nova intelectualidade internacional.

As meninas baloiçam bugigangas caras pousadas em Chanel, escrupulosamente, impecavelmente, divinalmente penteadas, e riem-se imenso, imenso, imenso, imenso, saltitando de Sartre em Sartre até, se encontrar Simone perfeitamente maquilhada num charro mergulhado em vodka martini.

Faço avançar por entre a multidão as labaredas tresloucadas do meu cabelo, abrindo alas com a ameaça de incêndio e beijo o aniversariante que, esmagado de ternura e de presentes, tenta sobreviver aquele tsunami de imbecil e plastificada sofisticação.

Deuses!

Só um drone - e eu dentro dele - me faria voltar a suportar uma pindérica imitação da maravilhosa fotografia de David Stewart.