27.3.23

A Gaffe censurável


A Gaffe tenta socorrer um amigo que aflito lhe fornece as credenciais de acesso ao seu
blog que corre perigo de extinção.
A exportação impõe-se, mas os obstáculos colocados a este processo são inúmeros, iniciando-se com o ficheiro que é produzido pela plataforma de origem e que, aquando do download, apresenta erros vários e malware propositado que o impede de ser transferido. O processamento é interrompido e retrocede.

A plataforma em questão, após vários anos de total permeabilidade e permissividade a todas as formas de expressão, foi pressionada pelos patrocinadores que não querem ver os seus produtos entalados entre umas pilas e uns pipis em franca actividade lúdica. A pornografia pura e dura - sobretudo a segunda - tinha invadido o terraço, asfixiando os gatinhos fofos, as paisagens idílicas, as frases encaixilhadas e os outfits do ano.
É evidente que ao passear por aqueles lados se ficava ligeiramente enjoada. Os mais que explícitos Clips, samples, pics – tudo estrangeiro -, não poderiam nunca deixar de figurar na estante do porno mais puxado e ficariam lindamente a decorar qualquer sexshop mais ranhosa. Num vislumbre rápido, qualquer incauto visitante poderia supor que se tinha enfiado num site obscuro onde a mais inocente das imagens expostas, permitiria canonizar a Cicciolina - e os deuses sabem como merece respeito esta menina.

Parece aceitável que a plataforma, pressionada pelos patrocinadores, tenha decidido impor regras, abolindo publicações de cariz sexual, embora tenham permanecido intocáveis - em nome da liberdade de expressão -, os blogs de propaganda nazi, os racistas e os xenófobos que por lá pululam.

Seria usado um algoritmo que varreria todas as publicações, alertando os usurários para o imediato apagar de … mamilos. Depois se vassourariam as restantes ocorrências anatómicas mais desnudas.
O meu querido amigo tinha há cerca de quatro anos um blog onde recolhia ilustrações, pintura, desenho, BD, colagens e todas as outras formas de manifestação artística ao seu dispor, executadas em duas dimensões - excluindo-se, portanto, as provenientes da escultura. O leitmotiv era o Homem. Nu ou vestido.
O algoritmo varreu, de uma assentada, as representações de guerreiros e de atletas gregos antigos em frisos onde a pilinha de um espreitava por entre as dobras de um vago tecido; as iluminuras medievais onde se insinuavam as ceroulas do camponês com avantajado conteúdo; os mamilos de S. Sebastião ilustrado pelos maiores génios da pintura universal, ao mesmo tempo que apagava, por exemplo, o Homem Vitruviano, de Leonardo, todos os valentões da Capela Sistina e o Cristo de S. João da Cruz, de Dali. Foi destruída a esmagadora maioria de imagens - de séculos idos até ao presente -, de um incontável número de artistas reconhecidos universalmente ou em ascensão que, de qualquer forma, representaram o homem nu ou quase nu.

Apanhou na sanha uma imagem do rosto de Jackie O, durante o funeral do marido, provavelmente porque identificou o chapéu da primeira-dama com um preservativo usado.

Este ensandecimento, esta purga, teve, portanto, um algoritmo como responsável zeloso, obrigado a reconhecer como pornográficas as obras de uma quantidade enorme de artistas que ousaram representar ou insinuar a nudez ou a seminudez masculina através do tempo.
O meu pobre amigo ficou tristíssimo. Depois esqueceu. As obras permanecerão na História da Arte, dispersas pelos museus e galerias. Não importa que não estejam visíveis ali.

Se fosse curadoria da Gaffe, o único conteúdo adulto que apagariam seria a conta da água e da luz.

Suspeita esta rapariga que esta necessidade de eliminar aquilo a que chamaram conteúdos adultos, atingindo nessa classificação artistas e obras de valor universal, reconhecidamente pertença da Humanidade, nada tem a ver com uma pretensa necessidade de evitar a todo o custo feridas em susceptibilidades mais sujeitas e mais frágeis. Compreende-se, apesar de tudo, que a plataforma tenha de gerir os seus recursos e as suas finanças e que se veja obrigada a obedecer a quem a paga, eliminando a pornografia que gesticula e desata aos gritos lúbricos logo ali ao lado dos biscoitos publicitados, pois que há contas que aparecem e a submissão é coisa facilitadora. O algoritmo escolhido é apenas prova da incapacidade técnica dos programadores.

É um algoritmo imbecil e mal engendrado. Não é gente. 

O que causa perplexidade é este aparente controlo ditatorial que se quer exercer sobre o que cada um de nós pode ver e não pode ver, pode ou não pode ter, pode ou não pode ser, retirando a quase toda a gente a capacidade de decisão e de escrutínio. Aconteceu um dia com Mapplethorpe em Serralves - alegadamente, pois que todo o imbróglio foi gerido de forma absolutamente patega, parola e a raiar a imbecilidade. 
Os artísticos membros do Conselho de Administração do museu, poderiam facilmente evitar o desaire Mapplethorpe sentando os rabinhos em cima das fotografias que classificaram como inconvenientes e merecedoras de censura. Era bem mais discreto, ninguém as veria e acabava por ser uma atitude que os aproximaria finalmente do que parece nunca terem sentido na vida.
A possibilidade de se reerguer a Inquisição - não forçadamente neste caso específico, visto que o ultrapassa -, parece partir do princípio que existe um número restrito de eleitos, dotados, encartados e autorizados a reger o que é lícito, ou ilícito, termos ao alcance do nosso próprio discernimento e da nossa livre escolha.
A facilidade com que nos reconfortamos e conformamos com estes decisores poderosíssimos, pois que tantas vezes tornam impotente a reacção adversa às suas prepotências ou injustificadas regras, promove e acicata o controlo de poucos sobre as maiorias, alargando-o a todos os aspectos da vida que achamos que é só nossa e que, à partida, só a nós nos diz respeito.

Desenganemo-nos, pois, que eles chegaram e duvidemos se alguma vez partiram.

Não incomodou grandemente a retirada da pornografia da plataforma, mesmo apesar de consubstanciar uma regra introduzida a meio do campeonato. Existem sites destinados exclusivamente ao assunto e não parece legítimo reivindicar-se a obrigatoriedade de determinado sítio, patrocinado por empresas que vendem fraldas, carros e pastilhas, acolher pilas e pipis indiscriminadamente, tudo ao monte e fé sabem os deuses em quem, só porque sim e em nome da liberdade de expressão. No entanto, reconhecemos que é irritante a purga ter sido levada a cabo por um algoritmo que censurou em simultâneo um acervo considerável de obras de arte.
A leviandade e a irresponsabilidade com que foi escolhida e usada a ferramenta informática foi extraordinariamente superior ao uso que ali se fazia das ferramentas apagadas.

Nada se conseguiu fazer.

Quem pode, manda e manda em tudo, que há de tudo como no velho boticário. Pelo que se vê, não manda quem pode com a grafia antiga usada em Farmácia.

Mas há exemplos mais bizarros. 

A Gaffe confessa que também fica muito perturbada quando embate com o Fauno de Barberini. Exactamente por isso, levanta os olhos ao céu e pede protecção a Paulo IV, o santíssimo papa que ordenou que se cobrissem as miudezas - a palavra neste contexto é mais do que bem empregue - das figuras criadas por Miguel Ângelo no tecto da Capela Sistina. É bem verdade que o obreiro desta façanha, o pobre Daniele da Volterra, ficou conhecido pelo il braghettone, o braguilheiro ou o calcinhas, mas o epíteto constitui uma perfeita injustiça, já que da Volterra se limitou a ser o precursor de Victoria’s Secret e nada mais fez do que dar início a um processo continuado por Clemente VIII que chega a colocar a hipótese de destruir o tecto - salvo apenas pela intercepção da Academia de S. Lucas - e que tem o seu mais mimoso acontecimento quando Inocêncio X ordena que se cubra a nudez do Menino Jesus pintado pelo querido Guercino, homem pio e beato.

A Gaffe, no entanto, ficou mais descansada e tranquila quando, alguns velhos e muito castos séculos depois, Hassan Rouhani exigiu que na sua presença se cubrisse a nudez esbardalhada pelos Museus Capitolinos. Apesar de ser desta vez um Estado laico a obedecer a uma imposição religiosa. Noblesse oblige e o ouro é metal nobre.
O que escandaliza esta rapariga esperta é o facto de terem escondido pipis, mamocas e pilitas atrás de painéis brancos que unidos parecem caixotes de quem se vai mudar para Castel Gandolfo.
A Verdade é que Paulo IV não tinha à mão de semear os trapos dos criadores - recordemos que na altura apenas Ana Salazar via a sua carreira iniciada -, mas Matteo Renzi tinha uma panóplia de fashion designers dispostos a vestir os manequins de mármore. Armani, Valentino ou Dolce & Gabbana matar-se-iam por tamanho cartaz publicitário.
Depois, se o ultrapassado e ido Matteo Renzi quisesse beliscar os franceses que de forma muito pouco educada - tendo em conta que nos faz lembrar o grosseiro se não gostas, come em casa -, anularam o almoço quando perceberam que Hassan Rouhani recusava a presença da carta de vinhos, podia perfeitamente ter escolhido Dior insinuando uma cumplicidade francesa.
A Gaffe, nestes peculiares momentos, sente a falta de estadistas como Berlusconi. Seria interessantíssimo ver as trombas de Rouhani quando, numa visita oficial ao Irão, ouvisse as exigências deste italiano maroto, antípodas das suas.

Nesta delicada sanha purificadora, recordemos o Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que proibiu a venda do livro de BD que apresenta dois heróis da Marvel, Wiccano e Hulkling, jovens rapazes potentes e muito pouco recatados, num abraço fechado num beijo onde é provável que a língua de um esteja a pesquisar o palato do outro.
A Gaffe não é a Folha de S. Paulo e não vai apresentar a ilustração proibida, até porque não satisfaz a sua refinadíssima exigência estética, mas, após apurada pesquisa, está apta a revelar que a BD é de 2012 e que os envolvidos no escandaloso e nojento beijo são ambos filhos de mães solteiras. Um é filho da Feiticeira Escarlate, que perdeu o Visão - pai do seu filho e não um problema oftalmológico -, e o outro é filho da Capitã Marvel, uma senhora que já foi um senhor. Nada de bom se poderia esperar, como se conclui pelos antecedentes.

A imagem proibida é suscetível de atentar contra a #deixemascriançasempaz, muito popular por estas paragens e originar mesmo um belíssimo artigo da autoria de Laurinda Alves, insurgindo-se mais uma vez - e possivelmente torcendo e retorcendo mais Decretos de forma a que pinguem atentados civilizacionais -, contra a degradação humana que permite que dois homens se beijem em público, provavelmente nos WC comuns e sobretudo nos desenhos.

A Gaffe leu, algures no tempo, uma entrevista em que Laurinda Alves declara que quando se dirige a Deus, fá-lo - e não falo, é de bom-tom sublinhar -, sempre em inglês, pois que sente que Deus a ouve e a entende melhor nessa língua.
A Gaffe considera que esta afirmação é suicidária. Laurinda Alves deixou de ser credível, pois que toda a gente sabe que Deus é francês - Il n’aime rien, iI est parisien. Não vale a pena ler a senhora se não se nos dirigir na língua de Molière.

#deixemascriançasempaz merece a nossa particular atenção, pois que prima pela defesa da moral e dos bons costumes infanto-juvenis que a escumalha demoníaca tenta violentar - qual cardeal a um acólito -, pese embora Crivella, Fátima Bonifácio e Portocarrera - trio maravilha unido nas lutas, em frentes diversas, pelos valores tradicionalíssimos que sempre comandaram o mundo, graças a Deus e à Santa Virgem cosmonauta.
A Gaffe não entende como não é visível ao comum dos mortais as consequências, malefícas e devastadoras, destas e de semelhantes imagens de despudorado, ínvio, depravado e desnaturado cariz sexual evidentemente anómalo - que esgotam no momento em são proibidas, mesmo sabendo-se que podem causar desmandos nas orientações sexuais das criancinhas.
É evidente que uma criança que vê um desenho onde dois rapazes se beijam em preparos homossexuais, por muito contrariado que seja, vai a médio prazo dar na veia - não necessariamente a poética -, ou pior, desatar a engatar matulões nos WC da Basílica de Fátima.

Já bastou o alarido que fizeram, bradando pela exclusão e queima da obra, quando deram conta que estava à solta uma frase mais marota de valter hugo mãe que podia ser injectada nos vossos rebentos conspurcando-lhes a inocência.
Agradeçam à Porto Editora por vos ter um dia revelado que existe a Ode Triunfal de Álvaro de Campos que por acaso contém os porcos versos:

(…) Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)
(…) E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspeto decente nos vãos de escada. (…)

Convém ler o resto. Há o resto. Não se fiquem por aqui, por muito que o desejem.

A Porto Editora é tão imaginativa quando decide divulgar a obra de um poeta!

Fiquemos por aqui que se faz longe, longo e tarde o rabisco da Gaffe e urge atacar o Nodi de Enid Blyton, o misógino detective de Agatha Christie, e demitir Hope Carrasquilla por ter visitado com os petizes do 6.º ano, da privadíssima Tallahassee Classical School, uma imagem de David, sem os pais terem sido informados previamente, pois que em causa estava material pornográfico.

A Gaffe - pelo sim, pelo não -, já deu início a uma petição pública para que seja esfregado e raspado o relevo depositado no Museu ao ar livre de Karnak que representa o rei Senusret I - nos idos 1971/1926 AC - abraçado a Min-Amun - que anda bastante armado, ou que ficou muitíssimo contente por ver o faraó.

Haja respeito pelas Instituições.
Valha-nos Deus.