20.3.23

A Gaffe na Foz


A saudade que tinha deste mar em fúria!
Doido, com garras, a explodir na minha Avenida, menina indefesa de olhos soturnos e dedos ruelas. Menina com alma encharcada. Salitre e rochedo. Menina dos olhos. A minha Avenida com medo do mar de olhos molhados.

Atravesso sozinha a Avenida do Brasil. É quase noite. É tarde. É tudo junto e mal iluminado.
Não gosto do mar quieto como se espreitasse em surdina o desalento - a saudade que tinha deste mar em fúria. Não gosto dos candeeiros frouxos, pardacentos, com luzes doentias, laranjas esmagadas imaturas. Não gosto do rapaz que me persegue, como um pedaço de vidro que encontrei na rua. Não gosto dos carros rompendo em ruído a desilusão parada no caminho. Não gosto de sentir.

Tenho frio. Tenho tanto frio!
Lembro-me de respirar fundo, profundo, sem fundo na tristeza de me ver sozinha.
Lembro-me.
Lembro-me da tabuada monocórdica e vou pelo caminho trauteando:
2x1=2
2x2=4
2x3=6
Até chegar ao nada.


A rua passa por mim encharcada.
A razão da rua passar é minha imobilidade à beira da água.
Vejo uma mulher de impermeável a entrar num carro. O guarda-chuva tem camélias estampadas e uma vareta partida como a imobilidade com que a vejo passar a rua. A minha visão é um guarda-chuva florido quebrado que deixa a água entrar na minha inércia.

Penso-me quieta.

A acalmia do estar imóvel é a ausência do sentir. A indiferença com que olho a mulher de impermeável e de guarda-chuva quebrado,com camélias estampadas, é a minha apropriação da rua, a ilusão de a não ver a passar.

Olho e a mulher entra no carro. Deixou o guarda-chuva preso à estrada.

Encontramo-nos nas palavras que escrevemos. Debruçamo-nos nas grades de uma letra ou nos vidros de uma outra. Nos arcobotantes que sustentam as paredes dos fonemas, nos claustros das sílabas, nas eixos e nos segmentos de outras rectas, nos arcos e tangentes, nas ogivas.
Se escrever o nome de uma flor, de um bicho ou o nome das águas que passam por aqui, ou da terra, ou dos pássaros, o que tu leres é já a flor que não escrevi, o bicho, a água ou o pássaro que não vi a voar na ausência de papel.
Posso escrever camélia. Encontro-me contigo longe da Avenida que chove e na inexistência do perfume. Escrevo camélia e a flor escrita é de um vermelho pálido. A tua é branca. No entanto existe no papel apenas a palavra. É uma camélia diferente das estampadas no guarda-chuva quebrado.
Posso deixar de escrever camélia, se o quiseres. Não nos encontraremos mais numa palavra. Deixaremos de ter o vermelho pálido ou o branco das pétalas da flor por escrever.

Mas em segredo saberemos que a camélia existe.