A mulher traz agora as chaves presas à cintura e faz
chocalhar o braçado gordo sobre o avental de pano cru com bordadura colorida na
bainha. Herdou-as por mérito e velhice. Engordou de orgulho e ganhou um brilho
seguro nos olhos pequenos e piscos.
Gosto desta mulher, embora saiba que nunca esta
mulher poderá gostar de mim. Entre as duas há um socalco sem vinhas ou a
intransponível distância lavrada por arados demasiado diferentes. O dela tem
estrelas recolhidas pela terra, o meu não conhece terra e de estrelas ouviu
falar apenas.
Serve ao meu pai batatas e bacalhau cozido. Rega-as com
azeite e mistura um alho migado e uma gota de vinagre de cidra. O ovo rola
oleado no prato de porcelana antiga. Enche o copo com vinho maduro e fica à
espera, erguida na poderosa posição de cuidadora do senhor, dono do seu mundo.
Atenderá os outros depois.
A minha irmã, sentada à direita do homem já servido, vai
debicar folhas de alface, com estilhaços de bacalhau seleccionados e
arrefecidos, tiras de cenoura crua, quadrados minúsculos de tomate, pó de salsa
e rodelas finas de ovo cozido. A mulher aproxima o galheteiro do animal quieto.
Um fio fino de oiro desce. A minha irmã sorri.
O meu rapagão não escolhe nada. Limita-se a
recolher no prato o que lhe dão, com a indiferença azeda dos grandes resmungões
e espera tamborilando a impaciência na toalha branca. Gosta muito da
mulher e revolta-se contra a seriedade dos seus gestos e a passividade
inútil com que os recebemos. Jamais entenderá a raiz do tempo aqui.
Procura disfarçar o embaraço de se ver sentado em frente da
minha irmã, a única que o pode assassinar apenas com um dito.
A mulher serve-o de forma igual à do senhor da casa. Entre
os dois homens foi criada uma cumplicidade com terra na boca. Uma cumplicidade
inquebrável. A que é feita de distâncias e de afastamentos, construída na luta
renhida que dura tardes a fio e com campo de batalha nos modos de alterar a
terra, de tratar dos bois e dos cabritos, de preparar vindimas, de cuidar
árvores de fruto e de escolher adubos para que as novas hortênsias abram
cor de sangue.
A mulher serve sem saber o almoço a três figuras densas,
espessas e potentes, quase antagónicas.
Quando os deuses escolhem juntar os paradoxos, a vida
inteira treme de surpresa.
A mesa está servida. O jogo que comece.
Eu sirvo-me sozinha. Os olhos comem.