23.3.23

A Gaffe no paraíso

Richard Finkelstein
A Gaffe sentada na esplanada do seu contentamento, ouve inadvertida duas adolescentes que para espanto seu trocam impressões em viva voz acerca da vida, mesmo tendo os telemóveis à mão de semear e SMS gratuitas.

- Quem me dera viver na Idade Média! Pelo menos não tinha de ir à escola – informa a que só não tem espinhas nos olhos.

A Gaffe fica arrepiada.

As pobres desconhecem por completo que mil anos de falta de luz são uma maçada e que a net era na altura bastante mais lenta. É verdade é que os cabeleireiros eram bem melhores do que os actuais, basta ver as cabeleiras das heroínas das séries onde os protagonistas masculinos usam collants e disparam setas de janelinhas muito Siza Vieira; é verdade que Yves Saint-Laurent deslumbrava num início de uma carreira promissora; é verdade que se comia mais verduras, mas não é de todo agradável os hotéis e as estâncias de Inverno não possuírem lavabos para uma rapariga retocar a maquilhagem.

Depois, há formas mais actualizadas de não se ir à escola, que nos digam as moçoilas do Irão.

Um petiz, que a Gaffe conhece na aldeia, deixou de ir à escolinha com a desculpa de não ter dinheiro para o autocarro e que para ir pelo seu pé tinha de se levantar às cinco da manhã. É evidente que a balela não tem fundamento. Sobra imenso tempo ao pai! O homem está desempregado e podia perfeitamente levar o rapazinho na carripana que apesar de tudo ainda mantém. A tradicional expressão desculpas de mau pagador é neste caso mais do que acertada. A Gaffe suspeita que a falta de apoio que o homem lamenta desesperançado se deve ao facto de não ter feito descontos para a Segurança Social durante o período em que tal lhe era exigido.

Valha-me Deus! Nem toda a gente pode ser primeiro-ministro. Não há forma do povo se convencer disso.

É lógico que se as suspeitas do Mestre se confirmam e o Paraíso for uma espécie de biblioteca, esta gente está condenada às penas do Inferno. Embora tal consubstancie um facto muito incómodo, pois que deixamos de ter pessoal competente para limpar o pó aos livros, pelo menos ficamos com a consciência tranquila sabendo que entregamos a felicidade a duas adolescentes, tendo em conta que no Inferno ninguém ensina nada.

Só é de lamentar que neste processo todo se esbata nos corações desta gente a noção da grandiosidade portuguesa que subsiste na memória da saga marinheira de outras eras, pese embora a tenacidade com que os poucos heróis que nos restam defendem a sua permanência hasteando a bandeira impermeável da nossa glória náutica nos cascos de submarinos e nas carcaças podres da nossa desobedecida Marinha.