24.4.23

A Gaffe do Outro

Gerhard Haderer
Não há muitas formas de olhar os outros e de lhes sentir o olhar.

Viver é encontrar constantemente a diferença e esta é reportada e lida de acordo com os alicerces que nos suportam. Os sufixos que usamos indicam que somos avessos ao que vemos -fobia -, seguidores do que encontramos -filia -, ou iguais na indiferença ou no respeito. Creio que um linguista explicaria bem melhor do que eu estas variantes, porque sou inepta nessa área.

O encontro como o Outro é sempre um encontro connosco. Lemos o que vemos com as palavras que são nossas. Raramente usamos a linguagem que nos afronta o hábito e a leitura que fazemos é normalmente contaminada pela nossa história, pelas nossas vivências, pelos nossos medos, pelos nossos anseios, esperanças, sonhos, conceitos, tragédias e por toda a paisagem humana que nos aculturou irremediavelmente. Olhamos o Outro e é uma multidão que conhecemos que o perscruta. Nunca estamos sós, lavados e nus, perante aquilo que vemos e que nos é estranho ou inabitual.

Lembro-me do episódio do soldado americano que na frente de um prisioneiro afegão que se debatia de mãos atadas, lhe perguntou a rir se o homem queria rezar ou mijar.
O analfabetismo cultural, a cegueira cultural, se for possível chamar assim a este exemplo de ignorância do Outro, talvez seja menos chocante aqui do que aquele que nos escandalizaria se alguém decidisse publicar uma caricatura de mulheres violentadas ou desenhasse humor usando crianças vítimas de pedófilos. Estamos enraizadamente proibidos de aceitar estes danos que consideramos de lesa-humanidade. São malditos.

Os exemplos dados são perigosos, porque aprendemos que há um abismo sem fim entre a pergunta do soldado e a abominação dos crimes referidos. No entanto, o pretenso humor do americano talvez seja lido pelo prisioneiro afegão como uma agressão grave, no mínimo cultural.
A velhíssima máxima que afirma que a nossa Liberdade finda quando começa a do outro, não conta com os inúmeros territórios que disputamos demasiadas vezes de forma selvagem e que há liberdades, como a de expressão, que são usadas para impor um olhar que nos pertence ao que nos é alheio ou que são desvirtuadas, usadas e abusadas para rentabilizar e promover os nossos óculos. A violência mais abjecta encontra nestes desvios um campo de pasto desumano.

Acredito piamente na Liberdade, mas não gosto dos que a cegam transformando o seu nome em estilete. Gosto muito, isso sim, de quem me disse uma vez que a Liberdade se pode definir como uma falsa questão de geografia. Há lugares onde se respira por sítios diferentes, mas o certo é que está sempre um frio de rachar.