24.4.23

A Gaffe do outro lado do espelho


A casa onde passo o tempo dos socalcos tem no centro uma imensa clarabóia por onde jorra a noite e o dia. Há uma perene cascata de luz que nos encharca, porque mesmo o luar entra como um caminhante.
Reflectida no enorme espelho barroco com garças pintadas, envelhecidas e de bicos erguidos, eternos à procura do vento que lhes abra o espaço, a luz reproduz-me sempre que ali entro.

Ao contrário do que seria de esperar, não gosto de espelhos.
Quem sou, ali? Serei eu ou será aquela que eu seria se tivesse o meu caminho sido o outro? Será a mulher reflectida o que o seguiu, sem as amputações na alma que o tempo vai fazendo, ou sou esta que se vê a ver, inevitável?

Não gosto de espelhos. Entregam-me a irresolução ao lado da certeza de que há uma mulher que nunca vou viver, que olha para mim sem dizer nada.