A Gaffe vai descobrindo lentamente que não sabe o que quer.
Gostava que lhe arranjassem material deste, do saber-se o que se quer e assim como quem não quer a coisa lhe oferecessem uma passa todas as vezes que se cruzassem nas ruelas da sua vida mais estreita, mas o certo é continuar a duvidar e a hesitar sem tino e sem rumo.
Com trinta e mais alguns - vários -, anitos, uma rapariga esperta deve já ter uma noção do que lhe convém.
É de circo a Gaffe perceber que é uma idiota com uma dúzia de indecisões numa das mãos e outras tantas incertezas agarradas à outra.
Saber que está ao seu alcance uma desmesurada quantidade de opções que abarca desde os passos mais banais do mais banal dos quotidianos até àquelas são significativas e traduzem a capacidade de alterar substancialmente esta mesma banalidade, não produz grandes efeitos na sua inépcia crónica e na sua incapacidade de voar ou de lidar com o desejo.
É o desejo, essa coisa pegajosa, que a prende à hesitação do início voo.
Durante todos estes trinta e mais alguns anos a Gaffe teve apenas um voar e é exactamente o facto de ter só este que a impede de aceitar a certeza de ter um pássaro na mão. A Gaffe gostava de experimentar, uma só vez, ser assolapadamente feliz, mesmo correndo o risco de se tornar depois um espantalho a ver para sempre os outros dois voar.
Começa a sentir-se velhota.
Uma rapariga sente-se envelhecer quando deixa para trás uma meia dúzia de ilusões que, apesar de a reconhecer exactamente como isso . uma parca meia dúzia -, não se importava muito de a sustentar, alimentando-a com a esperança tola de a ver aos saltos, mesmo à sua frente.
A velhice vai evoluindo com a desilusão. Quanto mais desiludidos nos tornamos, mais podres nós ficamos, diz o povo - e se não diz, devia.
A Gaffe sente-se um bocadinho amarga, um tanto ou quanto azeda, e este azedume vai crescendo à medida que percebe que deixou de esperar seja o que for dos domínios onde sempre foi uma idiota, uma mentecapta e uma destrambelhada imbecil.
Pensa que não sabe repartir, partilhar ou mesmo tentar aquela espécie de cumplicidade bacoca que vê passar por si a cada instante e que a faz olhar os pares enamorados com alguma - ligeira - perplexidade.
Esta falha que lhe parece irremediável, é escondida por uma arrogância que não é de todo sincera ou verdadeira, por uma distância muitas vezes a raiar a insolência, a impertinência, a petulância, o pedantismo ou o pretensiosismo, que, apesar de existirem - a Gaffe não é parva -, são ampliados de uma forma medonha, tornando-a uma menina má de todo o tamanho.
- Uma rapariga defende-se com o tem mais à mão - diz para se tranquilizar.
O problema é que nem sempre o que temos mais perto é aquilo que nos impede de acabar cheios de medo que nos aconteça aquilo que tentamos evitar. O problema é que por muito que queiramos envelhecer tranquilos, mesmo que isso nos forneça a reputação de santos, somos, sem apelo nem agravo, vulneráveis ao que sempre desejamos.
A Gaffe sempre desejou experimentar, só uma vez, apenas uma vez, ser assolapadamente feliz, mesmo correndo o risco de se tornar depois um paspalho sem um pássaro na mão nem outros espalhados a voar.