23.5.23

A Gaffe imperiosa

Billie Holiday  canta “Strange Fruit"  no primeiro Clube integrado de NY, 1939 - Gjon Milli

Todas as mulheres possuem um desenvolvidíssimo espírito científico, pese embora apenas algumas o usem para tentar dissecar a alma alheia. Por norma os instrumentos usados não incluem a inteligência, posto que para a operação fica aquém do esperado e, no máximo, o que se obtém é a pele do observado, que fica sempre bem no soalho de madeira.

Há no entanto casos em que é possível tentar chegar a resultados interessantes, se o analisado for um conceito.
As mulheres são peritas em elaborar pareceres, a formular noções e a construir máximas que os homens gostam de usar depois. São piçarras e tonys carreiras das nossas melodias e chegam aos festivais já vencedores. Deixamos, porque não importa o resultado do júri. O que nos dá gozo é a certeza do engano dos jurados que se revelam ainda mais tontos do que na realidade são.

Os conceitos que nós, mulheres, fazemos florir são como papoilas. Surgem às centenas, em campos magníficos e dão ramalhetes perfeitos, porque efémeros. É lógico que cada uma de nós escolhe a papoila que mais condiz com o seu tom de pele, com a cor do blush, com a cor do dia do decote, ou com a forma que lhe parece próxima da perfeição sonhada.

Malgré tout, é sempre uma papoila que é escolhida.

Esta inteligentíssima - apesar de modesta que sou, devo assumir -, introdução, chega a propósito dos conceitos de elegância feminina que provocaram um olhar bucólico sobre este campo plano e tão singelo onde pulula, aqui e ali, o escarlate das florinhas.

Há que pegar no bisturi.

A elegância - a Elegância -, pode ser analisada com objectividade científica. É possível arrancá-la do somatório dos distintos conceitos que são construídos por cada uma de nós e tornados de certo modo distintos uns dos outros. Há a elegância da mulher magra e alta, esguia como a haste de um lírio. Há a elegância da que veste sem ser vestida por Valentino. Há a elegância construída pela fleuma gélida perante incêndios de barracão. Há a elegância da maturidade que constrói castelos de reserva e discrição e há outras que não se dizem por exaustão.
Por norma, alia-se, mesmo inconscientemente, a elegância de uma mulher à sua biografia. No entanto, a Elegância pode ser isolada, pode ser objectivada, pode ser detectada sem as interferências usuais e sem as premissas que habitualmente nos levam a resultados viciados.
Uma mulher pode ser Elegante independentemente do mundo que a olha, para além de si, para além da sua história ou da sua voz. Neste pressuposto, pode ser Elegante uma psicopata, uma assassina, uma inócua dona de casa, uma apaixonada pelo funk, uma vendedora do Bolhão - estas são quase todas Elegantes, quando calmas! -, ou uma candidata a Prémio Nobel da Paz.

A Elegância é um palimpsesto. Talvez exista uma facilidade relativa em separar camadas, desagregar substratos, definindo-os como eleitos na subjectivização do conceito, mas no final - e afinal -, o somatório torna-se indistinto, quase invisível, quase mistério, porque, diz o aviador, o que realmente importa não se vê.
A Elegância não é portanto uma projecção do olhar do Outro. É o reconhecimento do Outro da existência imperiosa e única de alguém.
Sentimos a Elegância, somos Elegantes, porque somos, nós também, palimpsestos, mas nesse aglomerar, nesse sedimentar de histórias que são nossas - apenas nossas e sem domínio algum sobre o olhar dos outros - existe um elemento essencial que atravessa cada substrato, solidificando o todo.

A inteligência.

Nenhuma mulher é Elegante se não for inteligente e logicamente madura - aos dezoito anos escolhemos sempre o perfume incerto ou cantamos sempre a canção errada.