27.5.23

A Gaffe nas batalhas


Sabendo-se que esta família caça em conjunto, fácil se torna concluir que nessa operação ela é por norma o isco, a manobra de diversão e o engodo.

A verdade é que nunca esse papel a incomodou, chegando mesmo a ser um deleite participar na montagem das armadilhas. Admite que não é de todo distinto ou elegante ser usada para que se atingirem objectivos que lhe são alheios, mas considera sempre divertido verificar que em todos existe uma etiqueta com um preço, que ela faz acreditar que é elevado, embora suspeite que - cada vez mais -, toda a gente é um saldo.

É angélica, suave, pestaneja, aparenta ser inofensiva e não tem nas patinhas as garras visíveis. É fácil fazer com que inclinem a jugular desprevenida. Depois é com os outros.

A minha prima não gosta de vencidos.

Nunca ousou forçar uma queda, nunca se atreveu a desferir o golpe, mas não tem ilusões. Ninguém foge ao escrutínio. Todo o passageiro é revistado, mesmo que o bilhete seja apenas de ida. Tem o agradável defeito de, sempre que por si passam mortais, os pesar e repesar na balança do jogo da guerra.

Não é sangrenta, talvez seja apenas má pessoa.

Aprendeu a sobreviver neste vale de feras, consciente disto, com um rapaz de veludo que lhe foi apresentado demasiado cedo. Foi analisado ao pormenor e concluiu-se que o rapagão pertencia ao plano estratégico de caça familiar e que nos pratos da balança pesava mais do que seria de esperar. Foi insinuado que alguém devia distrair a vítima enquanto os bastidores se movimentavam. Aceitou contente. Falar de Genet, comentar Monet, criticar Stravinsky ou acarinhar Fellini, nunca foi complexo - Se não sabe, inventa.
Acrescentou a estes prazeres, o facto do rapaz respirar e se sentir o mundo a tremer. Sobretudo o hemisfério sul.

No entanto, sofreu um revés. O padecente confidenciou-lhe, logo ali na esquina de Darwin, a sua inabalável fidelidade ao espapaçado Amor da sua vida que ignorava o sofrido.
Tornou-se intocável a alma do petiz.
O amor sempre lhe inspirou um desmesurado respeito e jamais se tornaria cúmplice do espoliar de alguém apaixonado.

Soube, pouco tempo depois da sua recusa em fazer de conta que seduzia o triste, que aquele amor eterno e inabalável se tinha escapado por minutos e que, com os melhores cumprimentos da eternidade, tinha tentado pousar no meu irmão. Apanhou-o deitado no chão, de pés levantados e pousados no peitoril da janela e, não tão subtilmente como seria de desejar, enfiou-lhe a mão dentro das calças. Abalado, o meu pobre irmão nunca foi o mesmo, recusando aproximar os pés seja do que for. Stress pós-traumático, dizem os sábios.

A partir desse instante, a minha prima descobriu - para além de ficar a saber que a fidelidade é uma bicha muito subjectiva -, que nada, mesmo nada, a impediria de jogar. Gosta de jogar, o que não a torna excelsa companhia.
Enfraquece resistências, afrouxa cérebros, distrai argúcias, impede análises e faz tombar as paliçadas. Pérolas e perfumes são armas que conhece em demasia. Usa-as com perícia e destemor. Depois dos muros derrubados, perde o interesse.

O resto é dos abutres.

Não se comove. Nunca se comoveu com a chacina. Os que tombam são sempre os mais idiotas, os que acreditam no Poder e desconhecem que é exactamente nele que se encontra esconsa a mais potente ameaça de derrota. Estão vencidos, porque não sabem que se trava uma batalha, porque cegaram com o brilho das próprias armaduras, ou porque não entendem que às vezes - muitas vezes -, a maior vitória não exige luta.
Agrada-lhe sentir que pertence aqui, ao grupo dos carrascos, daqueles que executam imbecis.

Não é aconselhável aceitar o seu convite para o chá.