2.5.23

A Gaffe no dia em que o rei fez anos

João Bernardino
Ontem atrasei-me.

- ... E a que se deve este atraso? – rosna a minha irmã frente à minha aparição tardia no dia em que o Rei faz anos.
Um atraso em datas importantes, quando descoberto pela minha irmã, poder ser fatal.
 
A blusa de seda salmão ruge enrugada. As unhas nacaradas tamborilam subtis nas ancas perfeitas, mas sufocadas pela saia assassina. A mulher prima pela pontualidade em todas as ocasiões e esta característica é cultivada até à exaustão.
 
- Como consegues tu irritar todos os meus deuses logo no dia em que ele faz anos?!
Fácil. Os deuses da maninha irritam-se quando a maninha não tem tudo, mas rigorosamente tudo, controlado.

- Não compraste o presente – desvendei-lhe o segredo.
De sobrancelha erguida a minha ilustre irmã recua suspeita, abrindo os braços de forma teatral.
- O presente somos nós! Nós vamos ter com ele. Não penses que o vamos deixar sozinho naquele sítio coberto de coisas verdes.
Tentei sorrir mas como tinha ficado roxa o sorriso saiu amarelo, que, como ele diria, é a cor complementar.
 
Subitamente percebo que muita coisa errada está para acontecer.
 
Ele não gosta de surpresas. Odeia surpresas. Aparece sempre com ar tresloucado às surpresas que ficam sempre surpreendidas. Mas não adianta dizê-lo à minha irmã, olhos nos olhos. Até porque o peso das pestanas nunca a deixa de olhos abertos durante muito tempo.
 
A minha irmã foi substituída pelo assistente. Um rapaz que usa sempre gravatas fantásticas, com cores fabulosas, contrastando com fatos sóbrios, cinzentos e azuis, castanhos e pretos. O rapaz para além de ressonar, de dormir de boca aberta e babar a almofada - sei, porque mo disseram…-, nada mais tem que se lhe possa apontar como defeito. Vê mal, é certo. Recusa usar óculos porque pensa que lhe desgastam a imagem e receia que as lentes de contacto lhe provoquem ruptura de retina. Daí passar a maior parte do tempo de encontro às coisas. Chegou a ser acusado de assédio por uma funcionária que de imediato retirou a queixa, lavada em lágrimas, quando a minha irmã lhe confidenciou o segredo do rapaz.
Eu não fui substituída. Não vale a pena. Nunca faço falta.
 
Partimos rumo a um outro lado do Douro mais agreste, às vinhas, aos bois e às cabras fedorentas; aos homens a cheirar e a suor - mesmo gelados -, e a tresandar a fumados; às mulheres que olham para mim como se vissem el diablo rojo e que depois bendizem o exorcismo; às galinhas agora mais do que perigosas; aos solavancos e aos socalcos; ao Vale Abraão das velhotas e à beleza da paisagem.

Partimos e como quem guiava não era eu, perdemo-nos.

A minha irmã pesquisou na carteira demente, o minúsculo telemóvel. A oferta do assistente não foi das mais felizes. Pensando bem, as ideias do homem vivem todas encharcadas em antidepressivos. O aparelho tem sistemas inimagináveis, toques polifónicos, ligação directa à internet e - suspeito -, também dispara obuses e traça mapas de ataques aéreos a países petrolíferos ou até mesmo à Ucrânia.
 
- Não há rede. Aqui não tenho rede. Estamos onde? - graniza sem qualquer réstia de fleuma britânica.
- Dizia Carapito ali em baixo – expliquei.
- Carapito? Não me recordo disso. Mas tenho a certeza que não é por aqui. Eu pedi para fazeres atenção, mas tu trocas tudo com uma facilidade patológica.
Nunca tínhamos feito aquela viagem sozinhas e sempre que a fazemos em grupo toda a gente esbugalha os olhos clamando deslumbrada pela paisagem, impedindo que alguém preste atenção ao caminho e o memorize para posterior retorno.
- Carapito parece-me bem – tentei aplacar a fúria assassina.
- A ti parece-te bem os homens terem pelos no peito – concluiu.
 
Regressamos sem nos perdermos ao fim do dia - desta vez guiava eu -, após socalcos e agonias, espinhos de cactos, troncos pequenos de pinheiros mansos e esteios gigantes de granito bravo, um gato morto, lascas de madeira, caroços de frutas, vides e roseiras, pedras e penedos, curvas e abismos e mesmo um pedaço de um action man que saltou colhido pelo carro, sem sequer vislumbrarmos a sombra da casa onde ele seria agradavelmente surpreendido por duas tresloucadas viajantes.
 
Chegamos exaustas. Mentalmente desidratadas, como diria a minha avó paterna que passava a vida inteira a resmungar que sofria de fadiga crónica, mas que ninguém a mandava para Paris.

Foi ao sair do carro, quando a maninha tentava calçar os sapatos que tinha lançado para o banco traseiro durante a viagem e eu me preparava para finalmente desatar a correr para a banheira, que o vimos de olhar inocente e ar perdido e encantado, com ramos de flores nos braços, com sabor a terra no casaco, barba por fazer e cabelo espetado, à nossa espera para jantar, como tinha sido combinado um ano antes.
 
Era bem mais fácil ter-lhe oferecido desta vez e em vez do rio, a Ribeira.

(Parabéns. O teu Douro  és tu quando me abraças.)