2.6.23

A Gaffe em "Rabo de Peixe"


A Gaffe aprecia o que se equilibra no fio da lâmina, embora sinta demasiadas vezes que é fácil resvalar para a esquina pouca clara em que é possível algemar a atenção dos incautos através do uso matreiro do mais sombrio e pérfido que se esconde em nós.
Quando nos atiram à cara, descarnado, aquilo que não sentimos, vemos ou ouvimos, provavelmente por pudor, vergonha ou qualquer outra razão mais ou menos freudiana, reagimos da forma mais segura, escudando-nos naquilo que nos torna cúmplice do descarado que nos revela o que não admitimos assumir sozinhos e nos iliba, transferindo para o lugar do outro, o peso do que não temos coragem de arrastar às claras.
Embora se acredite que este possa ser um dos fundamentos ou uma das bases do sucesso televisivo desta série, o uso insistente desta característica entrega-lhe um pedantismo aborrecido com tendência para se pensar intocado por aquilo que usa como instrumento capaz de provocar a sedução dos outros.

Esta dimensão egocêntrica – sem a rede da genialidade – parece estar na origem de Rabo de Peixe.

Nesta série, Augusto Fraga e Patrícia Sequeira dirigem actores alegadamente topo de gama - Maria João Bastos, Albano Jerónimo ou Marcantonio Del Carlo, são exemplos da qualidade de alguns protagonistas -, cabendo a este elenco suportar e aguentar com a mestria e com talento indiscutíveis, uma série que deixa a Gaffe perplexa por não gostar das escamas.

Em todas as cenas se alça a perna e se disparam obscenidades, vulgarismos e pragas em todas as direcções, atingindo-se todo o elenco. Apesar de não ser tão original como parece, estas cenas são obviamente metafóricas. O que os realizadores apresentam nesta pequena e fedorenta nuance de um pretenso neorealismo hipster, é a metáfora daquilo que estão a fornecer ao público.

Qualquer espectador relativamente esclarecido e mais ou menos exigente, ou seja, qualquer criaturinha desprevenida e suficientemente desperta e esperta como esta rapariga, espera com sinceridade e algum entusiasmo, que tudo o que ali se vê melhore um bocadinho e que surja o resto, para além do já sabido, para além da meia tonelada de droga que deu à costa.

O que é Rabo de Peixe?

Uma série com a mania que pode ser documental, ou uma reflexão existencialista? Uma experiência neorealista fora de tempo, absolutamente falhada - mas com um bom colorista -, ou um raquítico labirinto onde todas as vias são becos sem saída na realidade? A colecção imensa e exposta de vernaculares figuras, ou um pretensioso exercício de pedantismo intelectual? Um produto destinado a fazer erguer a sobrancelha irónica de alguns eleitos de inteligência ímpar, ou a manifestação de um dueto de jovens intelectuais que se convenceu que era capaz de revolucionar o modo de fazer séries para a NetFlix? Um aglomerado de palavrões disparado à toa e a torto e a direito - que fica sempre bem a qualquer um que se quer demarcar de Manoel de Oliveira -, ou um engano empobrecido que é possível vender como se quer, fazer o que se quer, cuspir para o chão, deixar de língua de fora uma extensa cambadas de idiotas que não entende o jogo que se inventa e, depois da rapsódia de malabarismos giros, ser-se bem pago?

Segundo o que esta rapariga entendeu, é tudo isto e tudo mais que se quiser.

Não pescamos nada, logo tudo é peixe.

Depois digam que não é revolucionariamente inteligente aquela coisa.