5.6.23

A Gaffe no comboio


Não gosto de gares de caminhos-de-ferro, do barulho dos comboios nos carris; dos passageiros que sopram o ar do inferno enquanto esperam; do zumbido das placas corrompidas que anunciam chegadas e partidas; dos horários em papel presos por fios; das salas de espera nauseabundas onde há sempre um casal apaixonado a sussurrar; dos vagabundos como pombos magros; dos encontrões das mulheres cheias de sacos, das pontas de cigarros pelo chão; dos quiosques atulhados em jornais por onde espreita sempre um velho revisteiro; das malas com rodinhas; dos cafés de plástico sem esplanada; das fardas dos que passam maquinistas; dos relógios que nunca acertam horas nem destinos e do pescoço da mulher que olha o mudar sucessivo dos lugares, no quadro que encima as bilheteiras, e que nunca vai partir, porque não pertence a nenhum lado.

Não gosto de gares de caminhos-de-ferro. Não gosto de sair e me encontrar com doidos vagabundos a lancetar o tempo, sonhos sentados e malas onde amarfanharam o destino. Não gosto de entrar e de me encontrar perante velhas a arder de loucura. 

Lembro-me das pernas cruzadas da minha irmã que retocava o bâton, de caixa de marfim aberta e boca reflectida num espelhinho oval, sentada no banco da gare onde esperávamos o comboio que nos traria de regresso ao Porto.
Era Verão e o sol tocava a bainha do vestido solto e as sombras desenhavam arabescos no granito silencioso da espera. Nada bulia e um bagageiro rançoso encostado ao umbral da porta lambia a seda fresca das esguias pernas da mulher indiferente à canícula, a retocar o bâton de boca projectada num espelho.

A mendiga veio devagar sentar-se ao meu lado. Cheirava a urina e a fumeiro. Com olhos injectados, melados, de pálpebras descaídas com mãos gretadas e papudas, pequenas manápulas disformes, fétida boca escaqueirada e uma idade imensa que não era a dela.

Eu, no meio das duas, sentia que o universo se mostrava. A linha tinha-me no centro. No início e no fim, os dois opostos.

- Sofro da cabeça. Tenho tantas dores medonhas que quase me arrancam os olhos – explicou-me de repente.

Olhei para a minha irmã que permanecia indiferente. Pareceu-me um insecto esguio e fino. O gesto inesperado de humedecer o indicador e de o levar à sobrancelha esquerda para nela retocar um erro que tombara, acentuou a sensação de frágil e quebradiço insecto maléfico.

- Sofro da cabeça. São dores que até me arrancam os olhos - voltava a outra.

A minha irmã tem um mesquinho olhar sobre os do fim. Não os sente, não pode a eles ser exposta, não se responsabiliza. A dor alheia não deve ser mostrada crua, em ferida aberta. Pagava ao Estado uma fortuna para que ele cuidasse da protecção dos fracos.

- Também ouço vozes e de noite, na minha casa, vejo pessoas a estrelejar – continuou a mendiga de olhos injectados e palavra ensopada e pantanosa.

O comboio acabou por chegar e dentro, sentada, a minha irmã dispersa abriu revistas.

Da janela olhei, até perder de vista, a outra que ouvia vozes e via na noite gente com estrelas.

Lembro-me porque foi nesse instante que tudo envelheceu.