1.6.23

A Gaffe saussureana


Entre muitos - e entre os mais perceptíveis -, factores que acabam por nos aproximar do estrume sobre o qual germina a coesão de determinado aglomerado de gente e que consolida uma identidade nacional, encaixam os símbolos e signos identificativos da especificidade de um povo.

O hino, a bandeira, um monumento, ou mesmo uma paisagem, são signos em que o significante e o significado obedecem na perfeição às referências e aos parâmetros enunciados por Saussure – diz quem sabe.

Indignamo-nos com alguém a balbuciar o hino do país que representa, trocando as palavras do refrão ou tropeçando na melodia, porque este desconhecimento fere a consciência de identidade de grupo e de identificação com determinado conjunto de valores, comportamentos, cultura e mais uma quantidade de outras histórias que não se dizem para não prolongar a paciência até à exaustão. Queimar uma bandeira é, pelas mesmas razões, um insulto e uma desonra. A necessidade de reconhecer com clareza as ligações saussureanas existentes nestas situações é, mais do que habitual - e o habitual é imprescindível para que exista comunicação, mesmo a mais básica.

Hastear uma bandeira invertida para além de ser expressão de terra ocupada - conclusão já saussureana - é, simultaneamente, um lapso sausssureano.

Um país, um Estado, um povo, uma criatura, exprime-se também através destes signos e destes símbolos - diz-me um amigo que destas coisas sabe. 

Destruída a aliança entre significado e significante, através do não reconhecimento de uma destas faces da moeda - o que implica a quebra da identificação da outra -, o terreno que se abre é o da conjectura que permite todas as divagações, que incluem interpretações renovadas, mas que não deixam de estar coladas ao que atrás se diz em relação à dupla significante-significado, tocando mesmo as quase mitológicas - no sentido que Roland Barthes atribuiu ao mito.

Não interessa saber se é propositado ou se é lapso o hastear de uma bandeira invertida. O que se torna interessante é perceber que o símbolo - o signo -, alterado o significante, origina uma colecção razoável de congeminações que reproduzem significados diversos, nem todos apetecíveis.

Diz-me um amigo que sabe destas coisas.

É neste pressuposto - provavelmente errado -, que é dificil aperceber-me agora do lugar a que pertenço.

signos que foram lentamente desconstruídos e destruídos, provocando avalanches de novas e múltiplas interpretações que me constrangem.

Paris, por exemplo, alterou-se, quebrou a cumplicidade entre significante e significado que eu reconhecia. A Torre Eiffel - retiremos à sorte -, invadida por pastilha elástica e por Macron a tentar ser líder de coisa nenhuma, é o signo que já não corresponde à minha cidade. Há cada vez mais lixo amontoado nos Champs-Élysées. Há migrantes desprezados e rotos e esfomeados, há refugiados em completo abandono, há cada vez mais sem-abrigo, há miséria, há degradação humana e indiferença total perante o facto, nas ruas e avenidas da cidade-luz que se apagou. O Louvre é cada vez mais visto como depósito de roubos, de pilhagem, de prepotência francesa sobre culturas esmagadas e o paternalismo que usa para justificar e perpetuar a retenção de obras-de-arte que não lhe pertencem, deixa de fazer sentido - sabemos, por exemplo, do culto, o respeito e o cuidado quase obsessivos que os gregos dedicam desde há muito ao seu património cultural, embora se reconheça que o iraquiano se perdeu em grande escala, por não haver tutor. As escadas de Montmartre deixaram de ter poetas e boémios e pintores, não há mansardas há muito, há corrimãos de seringas e os bouquinistes atiram livros ao Sena embrulhados em plástico, juntamente com o crack perseguido pela polícia, a que não está ocupada a varrer das ruas os coletes amarelos e seus sucedâneos da reforma.

É correcto afirmar ter lido e sentido erradamente o signo Paris.

A aliança que fiz entre significado e significante não resulta agora, partida em duas metades visíveis e tornadas antagónicas, incongruentes, quase ilegíveis.    

Mea culpa, pois que sou tontinha.     

O Douro é, por sua vez, outro signo que perco com os tiros das luzes dos paquetes turísticos.  

O rio em agonia. Desvirtuado o seu correr pelas pacóvias instâncias de turistas deslumbrados com as selfies que o arrancam do sessego. As margens violadas pelas pisadas das gordas matronas que urinam agachadas longe dos barcos de recreio. Os ossos de frango assado, os restos de churrasco, de gordura despejada nos papéis atirados para as árvores que pingam plástico. Os socalcos que não aguentam o peso dos velhos obesos, de chapéus de palha e pena alemã ao lado, ébrios pelas provas que provam a indignidade dos assaltos que executam com a ganância de palatos não cuidados, emproados e arrogantes, fellianianos, cobardes, com um medo ainda discreto do povo, arrastando, atrapalhados e toscos, as mochilas da degradação.

A minha casa, retirada há muito dos roteiros dos flash, tornada inacessível por uma arquitectura que obriga a paisagem a fechar o cerco sobre os muros, sofre a ameaça de se tornar alvo desabrido de americanos bêbados, de ingleses que acreditam que a podem calcar, de chineses e de japoneses que lhe roubam raízes para fazer chá.  

O belíssimo signo da pinha de pedra ou ferro que enfeita as varandas, portões e jardins do norte do país e que nos avisa que somos bem-vindos, na minha casa foi erodindo, transformando-se num estranho objecto de pedra que se assemelha a um gigantesco brinquedo menos próprio.   

Mea culpa, pois que sou parvinha.     

Os meus signos quebrados, largam-me nua, sem saber onde fica a minha casa, próxima da criação de um outro mito.

E no entanto, há lugares que trazem unidos os contrassensos, as suas negações.
De encontro a eles pasmamos perante a nossa própria antítese, em frente às nossas margens duplas, defronte às nossas mais contidas incongruências.

A maior cisterna da casa dos meus avós - da minha casa? -  é um lugar quase improvável, quase negado por existir daquele modo. Para ali chegar é preciso percorrer caminhos íngremes, subir escadas de granito tosco e desbravar a coragem de nos irmos sorvendo nos espaços cada vez mais afunilados que gotejam sussurros e bater de asas de pássaros, de pedras e de folhas.
É sombrio o caminho da cisterna que não se avista a não ser já quando estamos muito próximos.
Guardada por duas árvores guerreiras, a planície aquática, de platina, recolhe o fio de aranha de água que a alimenta. Reparte-se cortada pelo espelho e deixamos de saber onde somos parados, se no lugar que respira ou no reflexo inumano e lancetado.

É o lugar do silêncio em paradoxo. O lugar onde se adivinha, no equilíbrio quase perfeito das ausências, o caos da nitidez das árvores e a ruptura mutilada dos sentidos.

É o lugar mais próximo de mim, porque é o lugar contido na vida dos gigantes que habitam o interior da casa. Igual a eles, a alma da cisterna afunda, no outro lado, a negação das coisas.

Tenho de reler Saussure enquanto choro.