Subiam e desciam a ladeira lentos e lassos, de manhã e ao entardecer. Ele vinha sempre à frente, porque era mais novo, porque tinha mais força. Ambos velhos como o tempo que demorava a galgar o esforço.
Durante cinco anos vi-os passar da minha janela. Quatro vezes por dia. Nunca quis saber se tinham dono. Estavam bem nutridos e bem tratados, embora a cadela mostrasse por vezes sinais de maleita, raspando o dorso nas pedras dos muros até à ferida. Nunca lhes soube os nomes. Nunca quis saber.
- Ela é "arraçada d’alma". Ele é um pastor.
Bastava. Ter um pedaço d’alma guiado por um pastor, é muito mais do que por vezes temos.
Não creio que fossem corajosos. Eram assustadiços. Tímidos, ensimesmados, de uma fragilidade comovedora que afastava os homens por respeito.
Quando a Alma se atrasava, o Pastor – dei-lhes eu os nomes -, voltava-se para trás e ladrava. Ela ouvia e vinha. Os dois caminhavam. Cambaleavam. Nunca os vi isolados. Amavam-se com uma simplicidade digna, com uma inevitabilidade eterna.
Há dias, o Pastor ladrou de modo inusual. Um ladrar insistente. Forçado, zangado.
Fui ver.
Estava sozinho.
Não completou o passeio habitual. Voltou para trás.
Voltei a vê-lo, depois e várias vezes. Sozinho. Não tinha Alma.
Passava devagar. Sozinho. Não ladrava. Gania baixinho.
Deixei de o ver.
Não sei se me sentiu chorar.