12.8.23

A Gaffe angélica


No pátio principal da casa existe um lago onde as manhãs de Inverno deixam películas de gelo enganadoras.

No centro desse lago existe um anjo de pedra.
Um dos joelhos mergulha na água enquanto o outro apoia o braço que leva a mão ao lugar onde devia haver um coração. Curvado, a asa esquerda está quase submersa enquanto a outra fechada o envolve em penas de pedra. A mão sem coração toca estendida a pele da água onde as carpas em dias de nevoeiro parecem faíscas vermelhas ou serpentes anfíbias como os deuses.

As árvores desgrenhadas desfazem, como em pecado, a ordem do jardim, a meticulosa descrição da dor da seiva, a geometria vegetal, reflectidas no espelho onde o anjo as inverte tocando-lhes as copas.
Cúmplice de todos os murmúrios. Senhor do petrificar da nódoa no silêncio que é encharcado com o perfume imenso da asfixia.

Enreda-se o frio nas asas do anjo e no corpo da água.

Sempre senti que a mão que lhe toca o peito encontra um ninho abandonado pelo coração que aprendeu o voo. Talvez ainda sinta o calor do corpo e do dormir do que perdeu, mas tem de procurar o bater de asas nas faíscas vermelhas das carpas que deslizam.

O divino delapida. Anjos e humanos são vítimas dos deuses.