O momento mais simpático para observarmos um homem é enquanto ele dorme, mesmo quando o faz de pé.
Sossegado e indefeso, podemos analisar com minúcia a testa larga e ampla, as centenas de pestanas tombadas sobre os olhos que sabemos castanhos, levemente riscados por um verde que se torna seco quando se lhes toca, as sobrancelhas espessas que desenham arcos perfeitos e atraentes, o nariz recto e poderoso em que as narinas tremem levemente à medida que respira, a boca carnuda com o lábio superior insolente, o queixo quadrado e viril, a barba densa e rude a romper a pele de cetim moreno, o pescoço forte e potente onde um pêlo encravado inflamado, aureolado, esbranquiçado, nos retira à força da contemplação.
São as mais insignificantes imperfeições, os mais irrisórios pecadilhos físicos, que fazem oscilar e recuar a atracção que uma mulher sente por um homem por quem não está apaixonada. Podemos ter na frente Rubén Cortada que encontraremos pela certa, na sua nudez asfixiante, a mazela insignificante no joelho, o minúsculo sinal peludo na planta do pé, o espigão rente à unha ratada ou o pêlo do nariz que avança como uma pata de um grilo, que nos vão congelar a empatia física e desactivar o íman em que se tornariam se fossem isentos destas irrelevantes incorrecções.
As mulheres - ao contrário dos homens que cegam atraídos pela globalidade da paisagem feminina - estão atentas às flores mais miudinhas, aos mais ínfimos pormenores de cor e de textura, que fazem parte do chão do corpo de um homem. Basta uma pequena dissonância para que haja uma avalanche capaz de soterrar o que se avista.
Talvez seja por isso que resistimos com maior facilidade aos apelos da carne como diria o senhor abade que de paisagens físicas conhece os arredores. Somos muito mais susceptíveis aos desencantos das miudezas e muito mais depressa desencorajadas pelo sobressalto de um pequeno lapso.
O facto é auxiliar precioso quando tentamos traduzir para uma linguagem perceptível as nossas emoções. Se perdoamos a borbulha no pescoço do rapaz adormecido e se a entendemos como a mais humana forma de se ser um deus, então é tão certo como simples. O homem que adormeceu ao nosso lado é o mesmo que nos acorda o coração.
Na foto - David Vargas por York Carmona